V Conferência das Cidades

"Cidade Cidadã - Cidade Saudável:

Os Novos Desafios do Planejamento Urbano"

Dias 2, 3 e 4 de Dezembro de 2003 - Brasília - Câmara dos Deputados

 

Carta de Brasília

Programa

Trabalhos dos Expositores

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

PROGRAMA

 

V CONFERÊNCIA DAS CIDADES

"Cidade Cidadã - Cidade Saudável:

Os Novos Desafios do Planejamento Urbano"

De 2 a 4 de dezembro de 2003

Auditório Nereu Ramos - Câmara dos Deputados


Lançamento do "Selo Cidade Cidadã"

 

Esta edição da Conferência das Cidades, a quinta de uma série promovida pela Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados, agora em parceria com o Ministério das Cidades, tem um significado especial: ela se instala no momento em que o Estatuto da Cidade, promulgado em 2001, começa a produzir seus primeiros efeitos sobre a vida dos cidadãos.

Será o momento propício para o intercâmbio de metodologias entre gestores, lideranças municipais e populares e equipes técnicas voltadas para o planejamento urbano à luz do Estatuto da Cidade. Nesse sentido, a V Conferência também permitirá um amplo debate sobre o Plano Diretor envolvendo praticamente todas as questões a ele relacionadas, do desenvolvimento econômico à participação popular.

Mais ainda, durante a V Conferência das Cidades, será lançado o '"Selo Cidade Cidadã, uma marca que, a partir de 2004, passará a ser anualmente concedida aos Município e aos Estado que desenvolver as melhores políticas urbanas com inclusão social.

 

 

2/12 – 9 horas

Abertura

 

Deputado João Paulo Cunha - Presidente da Câmara dos Deputados

• Olívio Dutra- Ministro das Cidades

• Maria do Carmo Lara- Presidente da CDUI

• Jorge Mattoso - Presidente da Caixa Econômica Federal

• Marcelo Deda- Presidente da Frente Nacional de Prefeitos

• Paulo Ziulkoski- Presidente da Confederação dos Municípios

• Carlos Eduardo Xavier Marun- Presidente da ABC

• Wilson Lang- Presidente do CONFEA

• Paulo Safady Simão – Presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção

Fórum Nacional pela Reforma Urbana - FNRU

Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental – FNSA

Senado Federal

10 horas – Painel

 

Novos Paradigmas da Política Urbana à
Luz do Estatuto da Cidade

 

Expositores:

Rodrigo Lopes (Sócio gerente da DF Consultores)

Aspásia Camargo (Fundação Getúlio Vargas)

Raquel Rolnik (Secretária Nacional de Programas Urbanos)

Jorge Wilheim (Secretário de Planejamento de São Paulo)

Presidente:

Deputado Zezéu Ribeiro (PT/BA)

 

14 horas – Grupos Temáticos

Grupo 01 – Plano Diretor e os Instrumentos Tributários e de Indução do Desenvolvimento: Outorga Onerosa do Direito de Construir, Direito de Preempção, Direito de Superfície, Urbanização Compulsória, IPTU Progressivo.

Expositores:

• João Whitaker (Prof. de Planejamento Urbano e Regional da USP)

• Cláudia di Cesari (Secretária Municipal da Prefeitura de Porto Alegre)

• Fernanda Costa (Instituto Pólis)

Presidente: Deputado Durval Orlado (PT/SP)

 

Grupo 02 – Os Instrumentos e Metodologias de Participação Popular na Elaboração e Discussão do Plano Diretor

Expositores:

• Olinda Marques (ONG Cearah-Periferia)

• Renato Pequeno (ONG Cearah-Periferia)

• Alexandra Reschke (Arquiteta e Urbanista)

• Saulo Silveira (União Nacional por Moradia Popular)

Presidente: Deputado Walter Feldman (PSDB/SP)

 

Grupo 03 Plano Diretor e Reabilitação de Áreas Centrais e Sítios Históricos

Expositores:

• Leonardo Castriota (Diretor da Escola de Arquitetura da UFMG)

• Helena Rosa dos Santos Galiza (GEURB – Caixa Econômica Federal)

• Luis Gonzaga da Silva (Gegê) - (Central de Movimentos Populares/FNRU).

Presidente: Deputado Pedro Fernandes (PTB/MA)

 

Grupo 04 – Plano Diretor, Transporte e Mobilidade Urbana

Expositores:

• Liane Nunes Born (Pres. do Instituto da Mobilidade Sustentável Ruaviva)

• Renato Balbim (Secretaria de Programas Urbanos do Ministério das Cidades)

• Deputado Jackson Barreto (PTB/SE) (Frente Parlamentar em Defesa do Transporte Público)

Presidente: Deputado Cláudio Cajado (PFL/BA)

 

Grupo 05 – Plano Diretor de Desenvolvimento Regional:
Abordagem Metropolitana e Aglomerados

Expositores:

• Heloisa Soares (Professora do Instituto de Geociências da UFMG)

• Tereza Cristina Pereira Barbosa (Professora Universidade Federal de Sta. Catarina)

• Ubiratan Félix Pereira dos Santos (Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenheiros)

Presidente: Deputado Inácio Arruda (PCdoB/CE)

 

Grupo 06 – Plano Diretor: Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV)

Expositoras:

• Vanesca Buzelato Prestes (Procuradora-Geral Adjunta de Políticas Sociais do Rio Grande do Sul)

• Berthelina Alves Costa (Fórum Nacional de Arquitetos e Urbanistas)

Presidente: Deputado Pastor Frankemberger (PTB/RR)

 

19 horas

Lançamento Festivo do "Selo Cidade Cidadã"

Inauguração da Sede Nacional da Frente Nacional de Prefeitos

Show do Clube do Choro de Brasília

Deputada Terezinha Fernandes (PT/MA)

Prefeito Marcelo Déda (Presidente da Frente Nacional de Prefeitos)

 

3/12 – 9 horas

Apresentação do Programa Nacional
de Administração Financeira dos Municípios (PNAFM)

Magno de Souza Rosa – Gerente Nacional de Programas de Políticas Públicas
para Estados e Municípios- Caixa Econômica Federal

 

9:20 h

Lançamento Oficial do Selo Cidade Cidadã

Deputada Maria do Carmo Lara (PT/MG)

Deputado João Paulo Cunha (PT/SP) – Presidente da Câmara dos Deputados

Deputado Inocêncio de Oliveira (PFL/PE) – Vice-Presidente da Câmara dos Deputados

 

9:40 h – Debate

Prêmios concedidos para experiências
exitosas de gestão urbana: critérios de seleção e sua avaliação

 

Caixa Econômica Federal
(Programa Caixa Melhores Práticas em Gestão Local)

Jorge Luiz de Souza Arraes

Fundação Getúlio Vargas

(Programa Gestão Pública e Cidadania)
Prof. Marco Antônio

UN-HABITAT/IBAM
(Prêmio de Melhores Práticas e Lideranças Locais)

Fernando Patiño e Carlos Alberto Arruda

Associação Brasileira de COHABs
(Selo de Mérito)

Carlos Eduardo Xavier Marun

Presidente: Deputado Devanir Ribeiro (PT/SP)

 

 

Ministério das Cidades – Exposição: "As Boas Políticas"

 

Ermínia Maricato (Secretária Executiva do Ministério das Cidades)

 

14 horas – Grupos Temáticos

 

Grupo 07 – Plano Diretor e a Zona Rural dos Municípios

Expositores:

• kazuo Nakano (Coordenador da Área de Urbanismo do Instituto Pólis)

• Nídia Inês Albesa de Rabi (Instituto Brasileiro de Administração Municipal)

Presidente: Deputada Perpétua Almeida (PCdoB/AC)

 

Grupo 08 – Os Instrumentos e Metodologias de Participação Popular na Elaboração e Discussão do Plano Diretor

Expositores:

• Olinda Marques (ONG Cearah-Periferia)

• Renato Pequeno (ONG Cearah-Periferia)

• Alexandra Reschke (Arquiteta e Urbanista)

• Antônio José de Araújo (Movimento Nacional de Luta pela Moradia)

Presidente: Deputado Dr. Evilásio (PSB/SP)

 

Grupo 09 – Plano Diretor para Pequenos Municípios

Expositores:

• Geraldo Marinho (Prof. da Universidade Federal de Pernambuco)

• Gerson Brito da Silva (Confederação Nacional das Associações de Moradores)

Presidente: Deputado Barbosa Neto (PSB/GO)

 

Grupo 10 – Plano Diretor e o Saneamento Ambiental

Expositores:

• Nilo Nascimento (Prof. do Depto. de Engenharia Hidráulica e Recurso Hídrico da UFMG)

• Silvano Silvério da Costa (Frente Nacional de Saneamento Ambiental)

Presidente: Deputado Ronaldo Vasconcelos (PTB/MG)

 

Grupo 11 – Plano Diretor, Regularização Fundiária e Destinação de Áreas para Habitação de Interesse Social

Expositores:

• Dulce Bentes (Vice-Chefe do Depto. de Arquitetura UFRN)

• Leonardo Pessina (Frente Nacional da Reforma Urbana)

Presidente: Deputado Ary Vannazi (PT/RS)

 

Grupo 12 – Plano Diretor e Desenvolvimento Econômico

Expositores:

• Sonia Krupa (Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho)

• Wander Geraldo da Silva (Confederação Nacional das Associações de Moradores)

Presidente: Deputado Joaquim Francisco (PTB/PE)

 

4/12 – 9 horas – Plenária

12 HORAS

Aprovação da Carta de Brasília da
V Conferência das Cidades

Encerramento

 

Realização

Comissão de Desenvolvimento Urbano e
Interior da Câmara dos Deputados

Ministério das Cidades

 

Coordenação

Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU)

Frente Nacional de Saneamento Ambiental (FNSA)

Associação Brasileira de COHABs (ABC)

Fórum Nacional de Entidades pela Superação da Violência (FNSV)

Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para todos (MDT)

Frente Nacional dos Prefeitos (FNP)

Confederação Nacional dos Municípios (CNM)

Federação Nacional dos Urbanitários (FNU)

Central de Movimentos Populares (CMP)

Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM)

Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM)

União Nacional por Moradia Popular (UNMP)

Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE)

Instituto Pólis

Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (ABEA)

Federação Nacional dos Arquitetos (FNA)

Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC)

Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenheiros (FISENGE)

 

Apoio

Caixa Econômica Federal
Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia

Topo

 

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

Carta de Brasília da V Conferencia das Cidades

Os participantes da V Conferencia das Cidades, promovida pela Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados e pelo Ministério das Cidades, em 2, 3 e 4 de dezembro/2003, representantes de entidades profissionais, sindicais, técnicas, governos municipais, estaduais e federal, movimentos sociais de luta pela moradia e organizações não governamentais debateram o tema "Cidade Cidadã: os novos desafios do planejamento urbano", e concluiram o seguinte:

 

  1. Ao final do primeiro ano do Governo Lula o País vive ainda um período de transição onde uma série de compromissos assumidos pelas políticas dos governos anteriores são amarras para a construção de um novo modelo sócio-economico.
  2. Entendemos que para que o pais rompa essas amarras e rume para a construção de um novo modelo de desenvolvimento socioeconomico e territorial, gerando emprego e distribuição de renda, é fundamental um novo pacto político efetivo com uma concepção distinta das que orientaram as políticas públicas até então.
  3. Este novo pacto deve ter como atores principais na sua construção os movimentos sociais e não mais o capital financeiro especulativo.
  4. Neste sentido, apontamos que a costura desse novo pacto deve passar pôr uma agenda que contenha impreterivelmente os seguintes pontos:
    1. O debate da ALCA em torno de uma posição intransigente na defesa dos interesses nacionais;
    2. O debate do entorno do acordo do Brasil com o FMI que deve sustentar uma posição de ruptura com o modelo anterior;
    3. Que o debate em torno do Projeto do PPP (Parceria Pùblico-Privado) privilegie o controle público e social dos serviços, ações e investimentos a serem realizados com recursos públicos, bem como a perspectiva da universalização do acesso aos seus resultados;
    4. Que na definição da destinação da Base de Alcântara sejam preservados os interesses e a soberania nacional;
    5. O debate sobre os Transgênicos deve enfrentar o monopólio econômico, o desafio do apoio à pequena produção, à economia familiar, e mais amplamente a implantação da reforma agrária sustentável no País.

  5. O enfrentamento dessa agenda traz conseqüências na construção e implementação da política nacional de desenvolvimento urbano. Tanto assim, que as principais propostas e posicionamentos aprovados nas quatro Conferencias das Cidades anteriores, e na I Conferencia Nacional das Cidades, ainda avançam de forma insuficiente.
  6. Nesse sentido, reafirmamos todas as propostas e conclusões aprovadas nas Conferencias anteriores, e destacamos os seguintes pontos essenciais na conjuntura atual:
    1. Implementação do Estatuto da Cidade e garantia da manutenção dos seus princípios, sem alteração do texto aprovado na Lei Federal 10.257, até que seja cumprida a sua primeira fase de implementação, isto é, 2006;
    2. A Implementação de Planos Diretores Participativos e em consonância com a função social das cidades e da propriedade em todos os municípios do Brasil;
    3. Aprovação do Projeto de Lei 2.710, que cria o Fundo Nacional de Moradia Popular e o Conselho Nacional de Moradia Popular e sua implementação;
    4. A retomada dos pontos contidos nos artigos propostos no Estatuto da Cidade, vetados no Governo FHC;
    5. A necessidade de imediata instalação e funcionamento do Conselho Nacional das Cidades, e implementação das diretrizes aprovadas na I Conferencia Nacional das Cidades;
    6. O fortalecimento do Ministério das Cidades, com a permanência do atual Ministro Olívio Dutra.

 

Brasília, Câmara dos Deputados, Auditório Nereu Ramos, 4 de dezembro de 2003.

 

Topo

 

 

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

 

 

TRABALHOS DOS EXPOSITORES

Aspásia Camargo

Carlos Eduardo Marum

Cláudia de Cesare

Dulce Bentes

Geraldo Marinho

Heloisa Costa

João Whitaker

Jorge Arraes

Kazuo Nakano

Leonardo Barci Castriota

Leonardo Barci Castriota - 1

Liane Nunes Born

Raquel Rolnik

Renato Pequeno e Olinda Marques

Rodrigo Lopes

Rosalvo Oliveira Júnior

Tereza Cristina e Antoninha Santiago

Tereza Cristina e Antoninha Santiago - 1

Silvano Silvério da Costa

Vanesca Buzelato Prestes

Programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais

Plano Diretor para Pequenos Municípios

 

 

 

 

 

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

Plano Diretor, Regularização Fundiária e Destinação das

Áreas Especiais de Interesse Social:

a construção de caminhos para a efetivação do Direito à Moradia

Dulce Bentes

Docente do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

 

Introdução

Nos marcos do processo de redemocratização do Estado Brasileiro e da rearticulação do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), a partir dos anos de 1980, colocou-se em curso um relevante processo de discussão e avaliação crítica sobre a forma como o planejamento das cidades vindo sendo conduzido no país, firmando-se a necessidade da construção de uma Política Urbana fundamentada nos objetivos de efetivação e ampliação dos Direitos Humanos e, em particular, dos Direitos Urbanos e do Direito ao Meio Ambiente.

Diante da crise social e ambiental das cidades e, notadamente, das dificuldades crescentes de acesso à terra e à moradia digna, por uma parcela significativa das populações urbanas, o MNRU definiu o Direito à Cidade como eixo central da Política Urbana, inscrevendo-o na agenda técnica e política do processo Constituinte de 1988. De acordo com Nelson Saule,

O Direito à cidade demarca a idéia da construção de uma ética fundamentada na justiça social e cidadania, ao afirmar a prevalência dos direitos urbanos e precisar os preceitos, instrumentos e procedimentos para viabilizar as transformações necessárias para a cidade exercer a sua função social.

Nessa perspectiva, o principio da função social da propriedade e da cidade fundamentou amplamente as propostas que integraram a Emenda Popular pela Reforma Urbana. Em que pese os avanços verificados na Constituição Federal de 1988, quanto à aprovação de princípios, instrumentos urbanísticos e fiscais que condicionam o exercício do direito de propriedade ao interesse social no uso dos imóveis urbanos, o cumprimento da função social da propriedade e da cidade teve a sua aplicação vinculada à elaboração do Plano Diretor, conforme ficou estabelecido no Art 182:

"O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana";

"A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação de cidade expressas no Plano Diretor"

Considerando que os Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado (PDDI) desenvolvidos no país durante as décadas de 70 e 80 revelaram-se como instrumentos distantes das reais necessidades das populações urbanas e da possibilidade de incorporar instrumentos e mecanismos capazes de efetivar o Direito à Cidade, colocou-se a necessidade de avaliação e redefinição conceitual e metodológica do Plano Diretor, com vistas à incorporação de instrumentos capazes de condicionar a propriedade urbana à sua função social, a exemplo do imposto progressivo sobre imóveis, o imposto sobre a valorização imobiliária, regime especial de proteção urbanística e preservação ambiental, concessão de direito real de uso, entre outros.

Após as reformas constitucionais (Constituição Federal /1988; Constituições Estaduais/ 1989 e Leis Orgânicas dos Municípios / 1990), verificou-se a revisão e elaboração de Planos Diretores na grande maioria das cidades brasileiras, principalmente nas capitais e naquelas com mais de 20.000 habitantes. Nesse sentido, a partir da década de 90, uma série de Planos Diretores, fundados no princípio básico do Direito à Cidade foram elaborados e aprovados, verificando-se a adoção dos chamados novos instrumentos urbanísticos, assim considerados pela sua recente inserção na experiência brasileira de Política Urbana. Dentre eles, cabe destacar os que estabelecem a interação entre regulação urbana e a lógica de formação de preços no mercado imobiliário, a exemplo do IPTU Progressivo no Tempo, do Solo Criado e do Direito de Superfície, além daqueles que incidem sobre a regularização fundiária de áreas ocupadas e não tituladas da cidade, como é o caso do usucapião urbano.

Com a difusão dos novos instrumentos urbanísticos, bem como do ideário acerca do Plano Diretor como um instrumento de efetivação do Direito à Cidade, tornou-se imprescindível a aprovação da Lei de Desenvolvimento Urbano, que, desde 1983 tramitava no Congresso Nacional. Nesse sentido, a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, expressa pelo Estatuto da Cidade (Lei 10257/01) foi muito importante para consagrar a aplicação dos referidos instrumentos, conferindo maior amplitude às ações de planejamento voltadas para a realização da função social da propriedade e da cidade, bem como para a democratização da gestão urbana.

A partir da década de 90, desenvolveu-se um processo significativo de aprofundamento dos recursos técnicos e políticos voltados para a implementação de instrumentos e mecanismos centrados na efetivação do Direito à Cidade, principalmente nas esferas político-administrativas, acadêmicas e de assessoria técnica. Contudo, apesar das experiências positivas quanto à elaboração de novos Planos Diretores, assim como de projetos na área da habitação de interesse social desenvolvidos por diversas administrações municipais, foram restritos os avanços na condução da Política Urbana, em nível federal, vistos notadamente, pelo esvaziamento dessa Política e pelos exíguos investimentos na área da habitação de interesse social.

Em 2000, o déficit habitacional brasileiro foi estimado em 6.656.526de nova moradias e, na atualidade, a ilegalidade e a informalidade urbanas se confirmam como um problema central a ser enfrentado no tratamento da questão habitacional. Nesse sentido, aprofundar e implementar os novos instrumentos urbanísticos e fiscais visando a efetividade da função social da propriedade constitui, hoje, um dos principais desafios na condução da Política Urbana em nosso país.

Com base nessas referências e visando subsidiar a discussão do Grupo Temático Plano Diretor, Regularização Fundiária e Destinação de Áreas para a Habitação de Interesse Social que integra a V Conferência das Cidades, buscamos no presente artigo refletir sobre os referidos instrumentos, a partir da potencialidade que apresentam para o enfrentamento do problema da ilegalidade e informalidade urbanas e, num sentido mais amplo, para a efetivação do Direito à Cidade.

 

Os Instrumentos de Política Fundiária face à Ilegalidade e à Informalidade Urbana

Revisando parte da produção recente dos trabalhos, sobretudo acadêmicos, que discutem o problema da ilegalidade e da informalidade urbana nas cidades brasileiras, vimos que as análises se colocam, tanto numa linha afirmativa sobre a importância do desenvolvimento de programas que promovam a regularização dos assentamentos constituídos fora da lei, buscando-se efetivar o Direito à Moradia, quanto numa perspectiva de questionamentos sobre o alcance dos programas de regularização fundiária, destacando-se a preocupação com os resultados perversos que tais programas possam gerar, por exemplo, em seus efeitos sobre a dinâmica imobiliária e/ou a proteção do patrimônio ambiental.

Nas abordagens urbanísticas, a condição de irregularidade é vista a partir da natureza da ordem jurídica em vigor, da visão individualista e excludente do direito de propriedade e da relação desses fatores com a legislação urbanística. Nesses termos, a informalidade urbana tem base nas normas urbanísticas excludentes, ou seja, na inadequação dos padrões urbanísticos elitistas com a realidade dos assentamentos constituídos fora da lei. Esse enfoque é desenvolvido por autores como MARICATO (1996), ROLNIK (1997), FERNANDES (2003), SAULE JR (2003), ALFONSIN (2003).

No campo da economia urbana, SMOLKA (2003) refere que "a informalidade não pode ser explicada somente pela pobreza, mas também por fatores que incidem diretamente na oferta do solo urbanizado, como a falta de programas habitacionais, a queda de investimentos públicos em equipamentos urbanos e serviços e o próprio esvaziamento do planejamento urbano. Destaca ainda que"(..) preços elevados de terrenos contribuem para a magnitude e persistência do problema da informalidade urbana(..)", sinalizando a necessidade de "(...) uma política preventiva que seja capaz de alterar as regras do jogo imobiliário urbano, sob pena das políticas curativas contribuírem apenas para o agravamento do problema e para alimentar o circulo vicioso da irregularidade".

As análises que enfocam o relação entre ilegalidade urbana e proteção ambiental, evidenciam conflitos que podem se configurar nos processos de regularização fundiária, entre a efetivação do direito à Moradia e o Direito ao Meio Ambiente. Nessa linha, destacam-se os estudos sobre as modalidades de apropriação dos terrenos da União (terrenos de marinha e seus acrescidos), com ênfase nas áreas de proteção dos mananciais. A partir da diversidade de situações que se colocam na ocupação dessas áreas, vimos que a escala e o grau de comprometimento dos bens públicos apropriados na ocupação e expansão dos assentamentos definem estratégias distintas para os processos de regularização urbanística e fundiária. Como exemplo, pontuamos a experiência de assentamentos com um padrão de ocupação e um grau de consolidação tal, que, em um programa de regularização fundiária, se impõem maiores limites e complexidade para a recuperação e valorização de área públicas. Nesse caso, são exemplares os assentamentos situados na zona sul de São Paulo, às margens da represa Guarapiranga. Outra experiência realizada em Natal/RN, cidade de aproximadamente 700.000 habitantes, evidencia a urbanização de um assentamento às margens do Rio Potengi, cujas condições fisico-ambientais da área e as relações institucionais entre a Gerência Regional do Patrimônio da União e Administração Municipal, propiciaram a realização de um projeto de regularização urbanistica e fundiária, que contemplou, em algum nível, a recuperação e valorização das áreas públicas.

Há uma convergência nas diferentes abordagens, sobre o entendimento de que os programas de Regularização Fundiária possuem um caráter curativo e que, portanto, precisam estar associados a outras políticas públicas, assim como por política preventivas, que possibilitem a oferta de habitação em áreas centrais e equipadas da cidade, conforme assinala Fernandes (2003): "(...) os programas de Regularização Fundiária têm um caráter escencialmente curativo e precisam ser combinados com investimentos públicos e políticas sociais e urbanísticas que gerem opções adequadas e acessiveis de moradia social para os grupos mais pobres".

 

Estatuto da Cidade, Plano Diretor e Instrumentos de Política Fundiária

Para assegurar o cumprimento da função social da propriedade e promover uma política de regularização fundiária no país, a Constituição Federal Brasileira e o Estatuto da Cidade instituem, principalmente, os seguintes instrumentos: Usucapião Urbano, Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia, Concessão do Direito Real de Uso e Zonas Especiais de Interesse Social. Todos esses instrumentos devem estar articulados com as proposições do Plano Diretor.

Usucapião Urbano é um instrumento de regularização fundiária que assegura o direito à moradia aos segmentos sociais que vivem em favelas, cortiços, conjuntos habitacionais invadidos e loteamentos irregulares, podendo ser aplicado de forma individual ou coletiva. A Constituição Federal institui a usucapião pró-moradia em áreas urbanas, nos termos do Art 183: "Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural". O Estatuto da Cidade prevê, a usucapião coletiva e a Assistência Técnica e Jurídica Gratuita, estabelecendo que (Art. 10 ) "As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural". (Art 12, parágrafo 2) "o autor terá os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de registro de imóveis". Cabe ao Plano Diretor definir áreas onde está situada a população de baixa renda passível de ser usucapida coletivamente (favelas, loteamentos irregulares e cortiços), assim como as áreas especiais de interesse social, que deverão ser urbanizadas pelo poder público municipal.

A Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia destina-se à regularização fundiária das terras públicas informalmente ocupadas pela população de baixa renda, sendo vetada a aquisição do domínio pleno sobre as referidas terras. A Constituição Federal, define que no Artigo 183, parágrafo 1, "O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independente do estado civil". A regulamentação do Art. 183 ocorreu através da Medida Provisória 2.220 que assegura "o direito à concessão de uso especial, de forma individual ou coletiva de áreas públicas federais, estaduais, municipais ou do Distrito Federal, de até 250m2, localizadas em áreas urbanas". A atuação do poder público em situações especiais: (Art. 4) No caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, o Poder garantirá ao possuidor o exercício do direito da concessão de uso especial em outro local; (Art.5) É facultado ao Poder Público assegurar o exercicio do direito da concessão de uso especial em outro local na hipótese de ocupação de imóvel: I. de uso comum do povo; II. Destinação a projetos de urbanização; III. De interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais; IV. Reservado à construção de represas e obras congêneres; ou V. situado em via de comunicação. O Plano Diretor deve especificar as áreas que serão destinadas às famílias a serem relocadas, no caso das situações especiais, bem como definir critérios para o processo de relocação, devendo também constituir Plano Habitacional que articule recursos do orçamento municipal destinados à implementação do Plano Diretor.

A Concessão do Direito Real de Uso (CDRU) é um instituto anterior à publicação do Estatuto da Cidade, tendo sido estabelecida pelo Decreto-lei n. 271 de 28 de fevereiro de 1967, que dispôs também sobre loteamento urbano e concessão do espaço aéreo. A CDRU pode ser definida como um direito real resolúvel, aplicável a terrenos públicos ou particulares, de caráter gratuito ou oneroso, para fins de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra ou outra utilização de interesse social. Pode ser concedida de forma individual ou coletiva.

Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) é um dos instrumentos de regularização fundiária previsto no Estatuto da Cidade. A alínea f, do inciso V do artigo 4 define que "as Zonas Especiais de Interesse Social são destinadas primordialmente à produção e manutenção da habitação de interesse social. Visam incorporar os espaços urbanos da cidade clandestina (favelas, assentamentos urbanos populares, loteamentos irregulares e habitações coletivas(cortiços) à cidade legal. Por este instrumento fica reconhecido, pela ordem jurídica da cidade, que para atender à sua função social as áreas ocupadas pela comunidade de baixa renda devem ser utilizadas para fins de habitação de interesse social". Classificação das ZEIS: em razão da características de uso e ocupação da área urbana. 1) Terrenos públicos ou particulares ocupados por favelas, por população de baixa renda ou por assentamentos assemelhados, em relação aos quais haja interesse público em se promover a urbanização ou a regularização jurídica da posse da terra; 2) Loteamentos irregulares que têm por suas características, interesse público em se promover a regularização jurídica do parcelamento, a complementação da infraestrutura urbana ou dos equipamentos comunitários, bem como a recuperação ambiental; 3) Terrenos não edificados, subutilizados ou não edificados, necessários à implantação de programas habitacionais de interesse social.. Para garantir a destinação da ZEIS, o Executivo Municipal deverá constituir programas de intervenção, tais como a urbanização e regularização fundiária de lotes urbanizados e a construção de moradias populares por sistema de ajuda mútua (mutirões).

 

Regularização Urbanística e Fundiária: caminhos para a efetivação de direitos

No primeiro momento deste trabalho, buscamos situar a trajetória de constituição dos novos instrumentos de Política Urbana centrados nos objetivos de efetivação do Direito à Moradia, a partir do movimento social pela Reforma Urbana, no país. Em seguida, retomamos as principais abordagens acerca do problema da ilegalidade e informalidade urbanas, bem como dos principais instrumentos de regularização fundiária disponíveis hoje no âmbito da política urbana brasileira. A partir dessas referências, sugerimos as seguintes questões para o aprofundamento do tema:

1) A implementação dos instrumentos do Estatuto da Cidade no âmbito dos Planos Diretores é considerado hoje um requisito fundamental para o enfrentamento da ilegalidade e informalidade urbana. Assim, propomos a reflexão sobre os principais limites que se impõem à aplicabilidade de tais instrumentos, sobretudo aqueles que atuam sobre a dinâmica do mercado imobiliário, e que são imprescindíveis para o desenvolvimento das chamadas políticas preventivas;

2) No tocante à regularização fundiária em áreas públicas, colocamos em discussão a definição de uma política nacional de gestão das terras públicas, ou seja, no âmbito da Secretaria do Patrimônio da União, adequada aos princípios da Política Urbana e, especialmente, às exigências do cumprimento da função social da propriedade, que considere: a) As especificidades regionais e do Patrimônio Nacional (Floresta Amazônica, -Mata Atlântica, Pantanal Mato-Grossense e Zona Costeira); b) A caracterização e categorização dos terrenos públicos em termos de comprometimento do patrimônio apropriado, com o objetivo de viabilizar projetos de regularização urbanística e fundiária que contemplem a recuperação e valorização do patrimônio público, quando as condições do sitio assim permitirem; c) Parâmetros para recuperação e valorização de áreas públicas no processo de regularização fundiária e urbanística, levando-se em conta as características e especificidades dos bens públicos estratégicos que estejam sob intervenção; d) A desburocratização dos processos de concessão de terras públicas nos projetos de regularização urbanística e fundiária; e) A definição de Termo de Cooperação Técnica entre Gerências Regionais do Patrimônio da União (GRPU), Órgãos Estaduais de Meio Ambiente (OEMAs) e o Executivo Municipal, visando articular e assegurar a proteção do direito à moradia, a proteção físico-ambiental e a proteção da natureza pública dos bens de interesse coletivo sob intervenção; e) O desenvolvimento de planos e instrumentos de monitoramento dos terrenos públicos concedidos, resguardando-se o interesse social e a proteção do patrimônio público; f) O estímulo à instituição de conselhos gestores das áreas públicas regularizadas, com a participação dos entes públicos envolvidos e das representações comunitárias; g) A regulamentação da Medida Provisória 2.220/01.

 

Referências Bibliográficas

ALFONSIN, Betânia. O significado do Estatuto da Cidade para a Regularização Fundiária no Brasil. In: RIBEIRO, Luiz César de Queiroz e CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma Urbana e Gestão Democrática. Promessas e Desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2003.

BENTES SOBRINHA. Maria Dulce P. Patrimônio Público, Gestão do Território, Direito ao Meio Ambiente. Os bens da União e dos estados na implantação hoteleira e turística no litoral leste do Rio Grande do Norte. Tese Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo. São Paulo,2001

BENTES, Dulce. Patrimônio Ambiental e Estatuto da Cidade: a regularização fundiária do Paço da Pátria e Areado nos marcos da MP 2.220 – Natal/RN. In: PROCURADORIA GERAL DO MUNICIPIO DE PORTO ALEGRE -PGM / PMPA/ ESCOLA SUPERIOR DE DIREITO MUNICIPAL. Avaliando o Estatuto da Cidade/ II Congresso de Direito Urbanístico. Porto Alegre: Editora Evangraf, 2002.

BRASIL. Estatuto da Cidade: Guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília: Câmara dos Deputados, 2001.

DOURADO, Sheilla Borges. A ilegalidade urbana e o meio-ambiente - problemas e perspectivas. In: FERNANDES,Edésio e ALFONSIN, Betânia. (Coord.). A Lei e a Ilegalidade na Produção do Espaço Urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

FERNANDES, Edésio. Perspectivas para a Renovação das Políticas de Legalização de Favelas no Brasil. In: ABRAMO, Pedro. A Cidade da Informalidade. O Desafio das Cidades Latino-Aamericanas. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2003.

MARICATO, Ermínia. Metrópole na Periferia do Capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo: Hucitec, 1996.

ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei. São Pulo: Studio Nobel, 1997.

SAULE JR, Nelson. Instrumentos de Regularização Fundiária - O Direito à Moradia nos Assentamentos Informais. In: A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.

_________, _____. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucional da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997.

SMOLKA, Martim O. Regularização da Ocupação do Solo Urbano: A Solução que é parte do problema, o problema que é parte da solução. In: FERNANDES, Edésio e ALFONSIN, Betânia. (Coord.) A Lei e a Ilegalidade na Produção do Espaço Urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

 

Topo

 

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

Alcances e limitações dos Instrumentos Urbanísticos na construção de cidades democráticas e socialmente justas.

João Sette Whitaker Ferreira

"Plano Diretor e Instrumentos Tributários e de Indução do Desenvolvimento: Outorga Onerosa do Direito de Construir, Direito de Preempção, Direito de Superfície, Urbanização Compulsória, IPTU Progressivo."

 

Antecedentes históricos da desigualdade urbana

É bastante comum pensarmos que a dramática situação em que estão as cidades brasileiras é uma decorrência natural do fato de o país ter hoje cerca de 80% de sua população morando nas cidades. É como se o caos urbano, as favelas, o transporte precário, a falta de saneamento, a violência, fossem características intrínsecas às cidades grandes, justificando a enorme dificuldade do Poder Público em resolver esses problemas e gerir a dinâmica de produção urbana.

Essa é, entretanto, uma visão equivocada. Ao contrário dos países industrializados, o grave desequilíbrio social que assola as cidades brasileiras – assim como outras metrópoles da periferia do capitalismo mundial – são resultantes não da natureza da aglomeração urbana por si só, mas sim da nossa condição de subdesenvolvimento. Em outras palavras, as cidades brasileiras refletem, espacialmente e territorialmente, os graves desajustes históricos e estruturais da nossa sociedade. Como muitos autores já ressaltaram, o fenômeno de urbanização desigual observado em grande parte dos países subdesenvolvidos se deve à matriz de industrialização tardia da periferia.

De fato, a atratividade exercida pelos pólos industriais sobre a massa de mão-de-obra disponível no campo provocou, a partir da década de 60, a explosão de grandes pólos urbanos no Terceiro-Mundo. Entretanto, esse crescimento industrial -- baseado na aliança dos interesses das burguesias nacionais e do capital internacional -- tinha como condição a manutenção do baixo valor da mão-de-obra abundante, o que restringia por princípio a possibilidade de se oferecer habitações, infra-estrutura e equipamentos urbanos que garantissem qualidade de vida aos trabalhadores. A cidade industrial periférica surge, desde então, promovendo estruturalmente a desigualdade social. Ao contrário do Estado keynesiano que se consolidou na Europa do Pós-Guerra, em que o crescimento do capitalismo fordista implicava um aumento generalizado dos níveis de vida e de consumo dos trabalhadores – gerando habitações e salários dignos , até para garantir a completude do ciclo produção-consumo –, aqui a associação das burguesias nacionais com os interesses do capitalismo internacional construiu um capitalismo canhestro, voltado à exportação e explorador da massa de mão-de-obra disponível, processo que Florestan Fernandes e outros pensadores chamaram de desenvolvimento desigual – em relação ao desenvolvimento do capitalismo hegemônico dos países industrializados – e combinado – pois dispunha novas estruturas econômicas industriais trazidas do centro sobre estruturas internas arcaicas herdadas do Brasil colonial.

Pois esse processo de industrialização, que gerou o que Maricato (1996 e 2000) chamou de "urbanização com baixos salários", estabeleceu-se por sobre uma estrutura social que nunca havia resolvido as contradições oriundas da sociedade colonial. Um século antes, no âmbito do trabalho, a substituição dos escravos por trabalhadores livres implicou na instauração de um sistema marcado pela dominação pessoal e a troca de favores, e não na generalização do trabalho assalariado nos moldes do capitalismo central. Em relação à posse da terra, com o fim do tráfico negreiro em 1850, a Lei de Terras institui a propriedade das terras devolutas apenas mediante compra e venda, dando-lhes um valor que não tinham até então, e afastando a possibilidade de tornar proprietários de terra imigrantes e escravos.

Essa foi a base arcaica sobre a qual se assentou, cem anos depois, a industrialização brasileira. Um novo modelo de produção, segundo Francisco de Oliveira simultaneamente industrial e urbano, que aprofundava a divisão social do trabalho herdada do modelo agro-exportador anterior. Com o forte crescimento industrial, ao qual não correspondia um desenvolvimento urbano socialmente digno, estava colocada a situação para o surgimento de uma dinâmica urbana conflituosa, parametrizada pela luta de classe.

Ermínia Maricato (1996) já mostrou como, nesse contexto, enquanto as periferias urbanas expandiam seus limites -- sempre desprovidas dos serviços urbanos essenciais -- para receber o enorme contingente populacional de migrantes rurais ao longo dos anos 60 e 70, o mercado formal urbano se restringia a uma parcela das cidades que atendia as classes mais favorecidas, deixando em seu interior grande quantidade de terrenos vazios, na especulação por uma futura valorização imobiliária. Paradoxalmente, esse espraiamento periférico da cidade industrial brasileira se dava pela ação deliberada do Estado, que estimulava – em especial no período militar – soluções habitacionais de baixo custo nas periferias, por serem adequadas ao modelo do capitalismo brasileiro, mantendo baixos os valores de reprodução da força de trabalho.

Como resultado desse processo historicamente excludente o quadro atual visto nas grandes metrópoles brasileiras é invariavelmente de absoluta pobreza, corroborando um quadro generalizado pelo continente. Nessas cidades, estima-se que cerca de 50% da população, em média, se encontre na informalidade. Os moradores de favelas são cerca de 20% da população de São Paulo, assim como de Porto Alegre, Belo Horizonte ou do Rio de Janeiro, chegando a 46% em Recife (Bueno, apud Clichevsky, 2000).

Além disso, o atual quadro urbano continua mostrando um exagerado ritmo de crescimento das periferias pobres em relação aos centros urbanizados, que paradoxalmente estão geralmente esvaziando-se. Enquanto a taxa média de crescimento anual das cidades brasileiras é de 1,93%, o crescimento na periferia de São Paulo, por exemplo, chega em algumas regiões a taxas superiores a 6% ao ano. Em compensação, o centro da cidade apresenta taxas de crescimento negativo, em torno de – 1,2%.

Entretanto, as políticas públicas, na maioria das cidades do país, continuam a favorecer em seus investimentos urbanos apenas as regiões mais favorecidas. Flávio Villaça (2000) mostrou como, na maior parte das capitais do país, verifica-se recorrentemente um eixo de desenvolvimento produzido pelas elites em seus deslocamentos em busca das áreas mais privilegiadas para se viver. Em uma clara inversão de prioridades, os governos municipais investem quase que exclusivamente nessas porções privilegiadas da cidade, em detrimento das demandas urgentes da periferia. Em pesquisa recente (Ferreira, 2003), mostramos como, em São Paulo, foram investidos em apenas três anos, entre 1993 e 1995, cerca de R$ 4 bilhões de dinheiro público em apenas 6 grandes obras viárias, destinadas geralmente ao tráfego de veículos individuais, em um quadrante de cerca de 50 km², justamente aquele em que se concentram os investimentos imobiliários de elite. Nas grandes cidades, sob a frágil justificativa de se criar "centralidades terciárias conectadas à economia global", estabelecem-se "ilhas de primeiro-mundo" em meio ao mar de pobreza e exclusão, sofisticados centros de negócios que exacerbam a segregação social urbana e se apropriam de grande parte dos investimentos públicos.

Tal cenário evidencia a necessidade premente de se reverter um quadro de exclusão e segregação sócio-espacial que apenas reflete espacialmente a inquietante fratura social do país. Nesse sentido, o papel do Poder Público, em especial dos executivos municipais, torna-se fundamental na medida em que consiga romper com sua histórica tendência a favorecer apenas os interesses dominantes. Os Planos Diretores e os instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade podem vir a ser ferramentas importantes nesse processo, embora não sejam por si só garantia de mudanças. Antes de discutí-los, porém, é importante entender a dinâmica pela qual se consolidam no país esses instrumentos, sem o que a compreensão de seu papel ficaria prejudicada.

 

O papel dos movimentos populares na reforma urbana

Face ao inquietante quadro exposto até aqui, é fácil entender que as desigualdades geradas pelo processo de industrialização e de urbanização geraram rapidamente insatisfações sociais significativas. Já em 1963, o Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana tentou refletir parâmetros para balizar o crescimento das cidades que começava a se delinear. A ditadura militar desmontou a mobilização da sociedade civil em torno das grandes reformas sociais, inclusive a urbana, substituindo-a por um planejamento urbano centralizador e tecnocrático. No campo da habitação, embora o regime tenha produzido, através do SFH/BNH, mais de 4 milhões de moradias, o recorte capitalista dessa produção – também marcada pelo clientelismo e a troca de favores – visava mais resultados quantitativos que rendessem frutos políticos do que qualitativos, e era voltado ao esforço do milagre econômico, favorecendo as grandes empreiteiras. Pelo custo que estas conseguiam praticar, as políticas habitacionais não conseguiram atingir a população mais pobre, abaixo de 5 SM, que ia aumentando cada vez mais, em decorrência de um modelo econômico de intensa concentração da renda. Isso aprofundou cada vez mais o fosso entre o mercado imobiliário legal e os que não tinham acesso a ele.

Nos anos 70, os excluídos do "milagre brasileiro" começam a mobilizar-se em torno da questão urbana, reivindicando a regularização dos loteamentos clandestinos, a construção de equipamentos de educação e saúde, a implantação de infra-estrutura nas favelas, etc. Uma primeira vitória ocorre em 1979, com a aprovação da Lei 6766, regulando o parcelamento do solo e criminalizando o loteador irregular. Na Constituinte de 1988, 130.000 eleitores subscrevem a Emenda Constitucional de Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, e com isso conseguem inserir na Constituição os artigos 181 e 182, que introduzem o princípio da função social da propriedade urbana. Porém, a regulamentação desses artigos só viria a ocorrer 11 anos depois, com a aprovação definitiva do capítulo da reforma urbana da nossa constituição, em uma tramitação que contou com a pressão constante do Fórum Nacional de Reforma Urbana, e que culminou com a aprovação do Estatuto da Cidade.

 

O que são "instrumentos urbanísticos"?

Para se entender a função dos instrumentos urbanísticos, que iremos tratar neste texto, é preciso voltar um pouco à questão da formação do estado keynesiano das sociais-democracias européias do pós-guerra.

Os esforços para a construção de uma sociedade industrial que promovesse certa distribuição das riquezas para o conjunto dos trabalhadores – para garantir um patamar aquisitivo compatível com a necessidade do próprio sistema em gerar consumo – deu ao Estado keynesiano um papel central na mediação entre os interesses do capital e do trabalho, garantindo direitos fundamentais e universais como o acesso à educação, à saúde, e a garantia dos direitos trabalhistas. Esse papel do Estado se reproduzia naturalmente no âmbito habitacional e urbano, visando garantir o direito à moradia ao conjunto da população e controlando as ações do capital imobiliário, por natureza especulativo e privatista.

Nesse sentido, fortaleceu-se desde então na Europa, e posteriormente também até na América do Norte, uma tradição intervencionista do Estado na regulamentação e no controle do desenvolvimento urbano, para garantir uma mínima variedade social na produção urbana, buscando prover habitação de interesse social integrada à malha urbana, para proteger antigos moradores mais pobres dos processos decorrentes da valorização imobiliária, que os expulsam e substituem por moradores de maior renda (a chamada gentrificação), para permitir a preservação dos espaços públicos como espaços de uso democrático, protegendo-os da ação invasiva da iniciativa privada, e para promover usos habitacionais sociais no mercado imobiliário privado através de ações de indução e incentivo. Vale notar que essa tradição não conseguiu impedir, nem naqueles países, processos marcantes de exclusão social e de gentrificação, capitaneados pelas forças do mercado. Mas o que se pretende discutir aqui é que, de maneira geral, e apesar dos percalços, há hoje uma certa cultura política naqueles países de respeito ao papel importante do Estado no controle urbano.

Para dar ao Estado a capacidade de exercer tal função, uma variedade de instrumentos jurídicos e financeiros foram criados. Por um lado, deu-se ao Estado um poder regulador significativo sobre o uso e a ocupação do solo, estabelecendo-se restrições de uso, parâmetros de adensamento, limites à verticalização, taxas de ocupação, punições efetivas para o descumprimento das leis urbanísticas, etc. Por outro lado, criou-se uma estrutura financeira – evidentemente apoiada na incomparável disponibilidade de recursos que aqueles países dispunham e dispõem – e uma gama de isenções para incentivar, através de linhas de crédito e renúncias tributárias específicas, determinadas ações dos agentes privados, como por exemplo a recuperação e manutenção de edifícios antigos nas áreas centrais, sua reconversão para locação social privada, ou ainda a fixação da população mais pobre em seus locais de residência, graças a auxílios financeiros diretos. Entre os incontáveis instrumentos urbanísticos, poderíamos citar, por exemplo, as Zônes d´Aménagement Concerté (ZAC) francesas, depois recuperadas e distorcidas no Brasil, espécies de intervenções do Estado sobre a propriedade fundiária, a partir das quais o Poder Público define novos usos e promove a construção e urbanização de áreas urbanas degradadas segundo novas diretrizes, vendendo-as em seguida para promover sua requalificação. Há também naquele país a experiência antiga, da década de 70, da outorga onerosa, lá chamada de "Plafond Legal de Densité", também experimentada nos EUA na mesma época, e que estabelece a cobrança pelo direito de construir acima dos limites determinados pelo Poder Público para determinada área da cidade.

Além dos instrumentos de urbanização e de regulação do uso e ocupação, como os dois acima citados, há também instrumentos de caráter tributário e financeiro. Continuando com os exemplos franceses, há por exemplo naquele país uma linha de crédito extremamente vantajosa, oferecida pelo banco público de fomento habitacional, para proprietários que queiram renovar para fins habitacionais edifícios degradados em áreas centrais e aceitem alugar parte dos apartamentos, por determinado tempo, por preços tabelados pelo governo e considerados "sociais". Outra ação muito comum é a isenção de impostos municipais para incentivar determinadas reformas ou usos que interessem ao Poder Público. Mas sem dúvida nenhuma, a "Lei da solidariedade urbana", aprovada na França em 2000, é o exemplo mais significativo de até onde o Poder Público pode ir no controle da produção do espaço urbano: por essa lei, todo município francês deve garantir que no mínimo 20% de seu estoque de habitações – tanto públicas como privadas – seja de interesse social, sem o que o município se vê obrigado a pagar significativa multa ao Ministério da Habitação.

Os chamados "instrumentos urbanísticos" criados na Europa do Pós-Guerra visavam portanto garantir ao Estado ferramentas jurídico-institucionais que lhe permitissem exercer um controle efetivo sobre as dinâmicas de produção e uso do espaço urbano, buscando promover o interesse público acima do privado, e tentando mediar os conflitos naturalmente decorrentes dessas dinâmicas.

Pois bem, é nessa mesma lógica que, no Brasil, os defensores da Reforma Urbana se mobilizaram para garantir a aprovação, na Constituição e posteriormente no Estatuto da Cidade, de instrumentos que permitissem dar às prefeituras um instrumental para exercer algum controle sobre as dinâmicas de produção da cidade. Esse é o princípio, em suma, dos chamados "instrumentos urbanísticos" apresentados no Estatuto da Cidade.

Note-se, entretanto, a profunda diferença estrutural entre as realidades dos países industrializados e a brasileira, já tratada no início deste texto. Enquanto lá os instrumentos urbanísticos surgem no pós-guerra, concomitantemente à estruturação do Estado do bem-estar social, como ferramentas necessárias para que o Poder Público possa desde o início, no âmbito urbanístico, promover esse modelo político-econômico e social e mediar os interesses do capital face ao bem público urbano, no Brasil os instrumentos urbanísticos surgem como uma tentativa de reação face a um modelo de sociedade e de cidade estruturalmente organizadas de forma propositalmente desigual, o que muda completamente seu potencial e seu possível alcance. Aqui, trata-se de reverter a posteriori um processo histórico-estrutural de segregação espacial, o que significaria, em essência, dar ao Estado a capacidade de enfrentar os privilégios urbanos adquiridos pelas classes dominantes ao longo de sua hegemônica atuação histórica de 500 anos. Não se trata, pois, de tarefa simples. E desde já percebe-se que tais instrumentos só poderão ter alguma eficácia se houver, ao mesmo tempo em que são criados, uma vontade política muito determinada no sentido de promover a reversão do quadro de desigualdade urbana em que vivemos, enfrentando portanto os poderosos interesses que hegemonizam hoje a produção do espaço urbano. Sem essa vontade política, que implica em políticas de governo claramente dispostas a enfrentar os privilégios das classes dominantes, os instrumentos urbanísticos podem servir apenas como uma maquiagem demagógica sem muito poder para mudar o quadro urbano brasileiro. Vale notar que a briga é longa, e até agora, tem sido difícil.

 

O Plano Diretor como um "pacto social"

É justamente nesse sentido, o de garantir a execução de uma vontade política coletiva de recuperação democrática das cidades, que os Planos Diretores, embora fragilizados por décadas de burocratismo e ineficácia, podem passar a ter um papel importante, ao abrir novas possibilidades, graças ao Estatuto da Cidade, de dinâmicas participativas que aumentem o controle social sobre os processos de produção da cidade.

Como se sabe, a Constituição de 1988 obrigou todo município com mais de 20.000 habitantes a ter um plano diretor. Embora fosse um instrumento urbanístico antigo, tal fato o reinseriu na agenda política urbana, ainda mais quando o Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, determinou que as cidades que ainda não têm plano o produzam em 5 anos. Além disso, o Estatuto dá uma importância significativa aos Planos Diretores, ao determinar que seja neles que se faça a regulamentação dos instrumentos urbanísticos propostos. Esse fato tem conseqüências positivas e negativas. Positivas porque joga para a esfera municipal a mediação do conflito entre o direito privado e o interesse público, e isso é bom pois permite as necessárias diferenciações entre realidade municipais completamente diversas no país. Além disso, garante que a discussão da questão urbana no nível municipal torne-se mais próxima do cidadão, podendo ser mais eficientemente participativa. Porém, o aspecto negativo é que, ao jogar a regulamentação dos instrumentos para uma negociação posterior no âmbito dos Planos Diretores, estabelece-se uma nova disputa essencialmente política no nível municipal, e conforme os rumos que ela tome, esses instrumentos podem ser mais ou menos efetivados. Em alguns casos, até, já ocorreu que o próprio texto do Plano Diretor, ao propor os novos instrumentos do Estatuto, relegue sua regulamentação local para mais uma etapa ainda ulterior, estendendo além do razoável seu prazo de efetivação.

O plano diretor é um conjunto de diretrizes urbanísticas destinadas a organizar e induzir formas desejáveis – do ponto de vista do Poder Público, diga-se – de ocupação e uso do solo. Define as políticas públicas urbanas, como os transportes, o zoneamento, a provisão de habitações de interesse social, etc. Aparentemente, sua obrigatoriedade foi um avanço na direção de cidades mais democráticas e justas. Mas, como qualquer instrumento de política pública, o plano diretor pode ter inúmeras feições. Por exemplo, como já mostrou Villaça (1999) ele vem sendo usado há tempos nas grandes cidades como um instrumento dos interesses das classes dominantes, com pouca efetividade na solução dos problemas reais das áreas periféricas. Nesse sentido, não há dúvidas que os instrumentos propostos no Estatuto da Cidade dão um novo fôlego aos Planos Diretores, conforme veremos adiante.

A tradição urbanística brasileira, como visto calcada em um Estado estruturado para ratificar a hegemonia das classes dominantes, sempre tratou os planos diretores por um viés tecnicista que os tornavam herméticos à compreensão do cidadão comum, mas eficientes em seu objetivo político de engessar as cidades nos moldes que interessavam às elites, muito embora grande número de urbanistas tenham se esforçado, na década de 70 e apesar do regime vigente, em torná-los mais eficientes. Mas por exemplo nas grandes capitais, infelizmente marcaram história os calhamaços técnicos nada democráticos, que serviram mais para fins eleitorais, para estabelecer uma rígida regulamentação nos bairros ricos, ou ainda para priorizar a construção de mais e mais avenidas (em detrimento dos transportes públicos), enchendo os bolsos de políticos inescrupulosos e dos especuladores imobiliários. Em compensação, os Planos Diretores pouco fizeram para a enorme parte da população excluída da chamada "cidade formal". Na prática, os planos se distanciaram da realidade urbana periférica, e não impediram a fragmentação das políticas públicas urbanas. É por isso, aliás, que hoje vêm sendo pesquisadas novas metodologias de planejamento, mais próximas da realidade e da gestão locais, mais abertas à participação dos agentes sociais dos bairros, e promotoras de uma reintegração transversal das políticas setoriais, como os Planos de Ação Habitacionais e Urbanos propostos recentemente pelo Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da FAUUSP.

Mas isso não impede, obviamente, que hoje os planos diretores possam ser um instrumento eficaz para inverter a injusta lógica das nossas cidades, em especial nas cidades de médio porte, ainda não tão atingidas pela fratura social urbana. Mas, para isso, não devem ser um ementário de tecnicismos, mas um acordo de toda a sociedade para nortear seu crescimento, reconhecendo e incorporando em sua elaboração todas as disputas e conflitos que nela existem. Só assim, surgido de um amplo e demorado processo participativo, que não fique sujeito à apressada agenda político-eleitoral dos governantes de turno (em que a "governabilidade" e a busca pela reeleição passam por cima dos fins públicos que se deseja das políticas públicas), o Plano Diretor pode se tornar um ponto de partida institucional para que se expressem todas as forças que efetivamente constroem a cidade. Se toda a população – inclusive as classes menos favorecidas – apreender o significado transformador do plano, cobrará sua aprovação e fiscalizará sua aplicação, transformando-o em uma oportunidade para conhecer melhor seu território e disputar legitimamente seus espaços.

Entretanto, a gestão participativa não pode se ater apenas ao aumento das audiências públicas ou dos fóruns de discussão com os diferentes setores da sociedade civil. Hoje a "participação", mesmo em governos de esquerda, se dá com hora marcada, em audiências já pautadas, sobre assuntos pré-estabelecidos. Como bem lembra o urbanista Flávio Villaça, é de se perguntar porque o tema da "participação" geralmente só se aplica a certos assuntos de governo, e não a todos. No Brasil, os fóruns participativos ainda se limitam ao Orçamento Participativo, ou a Planos Diretores que nem sempre serão efetivados. Porque, por exemplo, não há mecanismos de participação nas decisões de investimentos das empresas de saneamento, ou nas de metrô? A participação deveria incorporar de forma estrutural e definitiva a presença decisória da população em todas as estruturas de gestão da máquina administrativa, da escala local à escala mais geral. Nesse sentido, o processo de discussão das Conferências das Cidades, implementado este ano pelo Ministério das Cidades, é uma excelente iniciativa, ainda mais considerando tratar-se de um processo que abarca todo o país. Também são fundamentais, por exemplo, os conselhos participativos de habitação e de política urbana, implantados em várias cidades do país, em decorrência da exigência de processos de gestão participativos colocada pelo Estatuto da Cidade, desde que seja dada a eles uma função efetivamente decisória e não apenas figurativa. Porém, é certo que o grau de participação, sobretudo com algum poder de decisão, deve ir ainda muito mais longe para começar a ser eficaz em seu papel politizante e pedagógico, e como um instrumento de democratização da gestão pública.

Infelizmente, ainda hoje planos diretores continuam resultando muitas vezes de uma apressada montagem em gabinetes, visando apenas transformá-los, o mais rápido possível, em fatos políticos. Nas pequenas e médias cidades brasileiras, entretanto, a perspectiva é mais animadora, pois a mobilização da população para um processo participativo é mais simples, e por isso planos diretores democráticos podem ter enorme efeito. Mais uma vez, foi fundamental a cultura de mobilização e o processo de discussão participativa alavancados pelas Conferências das Cidades organizadas pelo Ministério das Cidades. A tomada de consciência coletiva sobre os desafios da questão urbana que as conferências promoveram ajudará a romper o verdadeiro "mercado de planos" criado por urbanistas interessados em vender às prefeituras "pacotes técnicos" que nem se preocupam em assimilar as disputas sociais existentes, e cria um cenário positivo para a discussão participativa do Plano Diretor e dos instrumentos do Estatuto.

Mas o que os Planos Diretores têm exatamente a ver com os instrumentos urbanísticos de que trataremos aqui? Como vimos, eles são fundamentais pois é neles que, segundo o Estatuto da Cidade, esses instrumentos devem ser propostos e regulamentados no nível municipal. Nesse sentido, fica absolutamente claro que, por princípio, os instrumentos urbanísticos propostos no Estatuto da Cidade nem estão desde já garantidos e nem são automaticamente eficazes. Tudo depende, na verdade, da forma como eles serão incluídos e detalhados nos Planos Diretores.

 

Os Instrumentos Tributários e de Indução do Desenvolvimento: Direito de Preempção, Direito de Superfície, Urbanização Compulsória, IPTU Progressivo, Outorga Onerosa do Direito de Construir, Operações Urbanas Consorciadas.

Temos então que os instrumentos tributários e de indução do desenvolvimento urbano tentam estabelecer, no cenário brasileiro, uma perspectiva de uma nova presença do Estado na regulamentação, indução e controle dos processos de produção da cidade. Cabe obviamente ressaltar que sua eficácia ainda é incerta, embora as previsões sejam otimistas, em especial a médio e longo prazos. Entretanto, vale sempre repetir que seu sucesso – do ponto de vista do bem público e da reversão das desigualdades urbanas – dependerá sempre de uma forte e determinada vontade política, já que os objetivos a atingir se confrontam com interesses poderosos.

É importante separar aqui o que se chamou de instrumentos "tributários" daqueles considerados de "indução ao desenvolvimento urbano". Aqueles citados no subtítulo acima estão apenas na segunda categoria (inclusive o IPTU progressivo), embora todos eles possam até eventualmente servir para arrecadação, o que as vezes até acaba desvirtuando seu sentido, como veremos adiante. Os instrumentos de indução do desenvolvimento urbano visam, em essência, refrear o processo especulativo e regular o preço da terra, ao forçar o exercício da função social da propriedade urbana punindo o "mau proprietário", buscam permitir um maior controle do Estado sobre usos e ocupações do solo urbano, em especial em áreas que demandem uma maior democratização.

Imóveis situados na chamada "cidade formal" geralmente se beneficiam de infra-estrutura urbana (esgoto, água, luz, asfalto, etc.) custeada pelo poder público e, portanto, por toda a sociedade. Mantê-los vazios representa um alto custo social. Exercer a função social da propriedade não é nada além de dar-lhes uso. Nos centros das nossas metrópoles, por exemplo, o descompasso entre os proprietários, que mantém um mercado sobrevalorizado irreal (edifícios ficam desocupados por anos, sem ter quem queira comprá-los ou alugá-los), e a demanda generalizada por habitação pelas faixas de renda mais pobres – tanto moradoras dos centros, geralmente em cortiços, quanto das periferias – que não têm como acessar essa oferta, gera uma situação inaceitável. Nesses casos, os instrumentos tributários e de indução do desenvolvimento urbano podem ter um papel importante, ao dar ao Poder Público ferramentas que lhe possibilitem regular e controlar os terrenos vazios, os negócios imobiliários de compra-e-venda, e assim por diante.

Como já existe farto material teórico apresentando exaustivas discussões técnicas a respeito de cada um desses instrumentos, iremos fazer a seguir uma reflexão sobre eles a partir da ótica discutida neste artigo até aqui.

 

- Instrumentos tributários e de financiamento.

Vale mencionar que trata-se aqui de instrumentos que não estão geralmente previstos no Estatuto da Cidade, mas que os Planos Diretores certamente devem considerar, fazendo uso de inventividade e inovação.

O IPTU, por exemplo, importante instrumento de arrecadação, e que deve ser um tributo progressivo (neste caso, que não é o da progressividade no tempo, significa que os mais ricos pagam mais e os mais pobres pagam menos ou nada), ainda é pouco cobrado nas cidades brasileiras, até mesmo porque ainda é preocupante a falta de sistemas cadastrais municipais integrados, que dêem às prefeituras uma melhor capacidade de controle, de gestão e de arrecadação.

Mas inúmeros outros benefícios fiscais e financeiros podem ser pensados e aplicados para fomentar determinadas diretrizes urbanas. Isenções tributárias podem ser usadas para incentivar reformas e/ou novos usos, e linhas de financiamento podem ser pensadas, por exemplo para reabilitação de imóveis em área central, para auxílio-moradia à população ameaçada de expulsão por causa da valorização fundiária/imobiliária, e assim por diante, para incentivar o aluguel de baixo custo no mercado privado, e assim por diante. Um instrumento interessante, que recentemente tornou-se lei em São Paulo, está na compra pela prefeitura de imóveis devedores de IPTU com desconto do valor da dívida no preço pago, para uso habitacional de interesse social.

Mas, evidentemente, trata-se de um conjunto de iniciativas que ainda depende, até pelas drásticas limitações financeiras por que passam os municípios, da estruturação de políticas habitacionais e de financiamento à moradia integradas, que envolvam todas as esferas de governo. É importante frisar o novo papel que a Caixa Econômica federal poderia exercer nesse sentido, e a importância da criação do Ministério das Cidades, que deve poder reger esse processo.

 

- IPTU Progressivo, Edificação ou Utilização Compulsória e Desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública.

Este conjunto de instrumentos visa atingir diretamente as propriedades urbanas que não cumprem a sua função social. A partir do momento em que são considerados sub-utilizados ou vazios pelo Poder Público, pode ser exigida a edificação ou a utilização compulsórias, que se não atendida gerará um aumento progressivo do IPTU – regulamentado e com limites claramente estabelecidos – até resultar, após 5 anos de progressividade, na possibilidade de desapropriação do imóvel com pagamento com títulos da dívida pública. Trata-se claramente de uma sanção aplicável ao proprietário que não respeite a função social de seu imóvel, o chamado "mau proprietário".

Embora seja um dos instrumentos de mais fácil compreensão, e cujo efeito seja potencialmente promissor, é difícil dar ao IPTU progressivo (entendido como o conjunto dos três instrumentos acima citados) um caráter de política urbana de reversão da especulação imobiliária, como tampouco de instrumento efetivo de arrecadação. Ele deve sim ser entendido como uma ação punitiva do Estado, que pode eventualmente conseguir conter tais processos especulativos. Isso porque os procedimentos que esses instrumentos estabelecem são longos, podem durar até sete anos, e são pontuais, tendo de ser autuados e resolvidos caso a caso, dependendo de uma gestão pública eficaz, até mesmo para realizar o trabalhoso levantamento dos casos passíveis de aplicação.

Além disso, um outro ponto desses instrumento é bastante polêmico: ao determinar que seja regulamentado no Plano Diretor, que deve identificar as áreas sujeitas ao IPTU progressivo, o Estatuto da Cidade deixa em aberto o que se entende por "imóveis sub-utilizados". Até que ponto, por exemplo, um amplo estacionamento na área central, cujo terreno certamente servirá um dia para alguma valorizada incorporação imobiliária, está ou não cumprindo sua função social? Até que ponto é ele uma área sub-utilizada? E um edifício de dez andares em que apenas o térreo esteja sendo utilizado? Evidentemente, a definição desses critérios depende das disputas políticas que ocorrerão nas Câmaras Municipais, e dependendo dos seus resultados, pode diminuir significativamente o impacto do IPTU Progressivo como instrumento de controle do exercício da função social da sociedade dos imóveis urbanos.

 

- Outorga Onerosa, transferência do direito de construir e Operações Urbanas Consorciadas:

O princípio do "solo criado", bastante simples de entendimento, talvez seja um dos mais antigos instrumentos urbanísticos de indução do desenvolvimento, já testado em várias cidades brasileiras. Como já dito, ele se origina em experiências internacionais, notadamente na França e nos EUA. No Brasil, a primeira experiência certamente remonta à década de 70 em São Paulo, quando o então prefeito Olavo Setúbal propôs, em 1976, lei nesse sentido, e esse instrumento vem desde então sendo constantemente discutido por urbanistas e demais militantes da Reforma Urbana. A idéia é dar ao Poder Público a possibilidade de recuperar a "mais-valia" obtida pelo proprietário graças à valorização gerada por investimentos públicos urbanos. Ao prover infra-estrutura urbana, a ação do Poder Público geralmente provoca imediata valorização fundiária e imobiliária da área, gerando lucros significativos aos proprietários. O "solo-criado", que torna o direito de construir independente da propriedade urbana, permite que o Estado onere construções que ultrapassem limites que ele mesmo estabelece. Assim, a outorga onerosa possibilita regular distorções de valorização geradas por essas intervenções, ou ainda compensar as perdas do proprietário relativas a processos de tombamento. Nesses casos, o proprietário de imóvel tombado, que perde o direito de construir naquele terreno, pode transferir esse direito para outras propriedades na cidade, usando-se do instrumento da Transferência do Direito de Construir, prevista no artigo 35 do Estatuto da Cidade.

A outorga onerosa aprovada no Estatuto da Cidade (art. 28 a 31) responde a várias possibilidades já testadas em diferentes cidades brasileiras. A venda de potencial construtivo pode por exemplo permitir uma maior verticalização – as vezes, mas nem sempre, revertida em maior adensamento – em corredores urbanos ou outras áreas cujo desenvolvimento urbano possa ser induzido. Por outro lado, o mesmo instrumento pode eventualmente refrear a verticalização em bairros residenciais horizontalizados, ao estabelecer uma taxação para a construção acima de um coeficiente construtivo básico (geralmente 1). Trata-se também de um eventual mecanismo de arrecadação, que pode ser aplicado em bairros com potencial de verticalização, que será portanto devidamente onerada. Mas essa possibilidade de arrecadação não pode transformar-se no objetivo do instrumento, pois senão ele acabará subordinando as necessárias decisões urbanísticas à desenfreada corrida por arrecadação. Nesse caso, a política urbana acaba tornando-se refém de uma lógica tributária, o que resulta em péssimos resultados para a cidade.

Essa é a distorção que ocorre com as Operações Urbanas Consorciadas, também previstas no Estatuto da Cidade. Estas são, em suma, uma variante da outorga onerosa, em que se especifica uma área dentro da qual os recursos arrecadados com a venda de potencial construtivo deverão ser obrigatoriamente aplicados para a recuperação viária e urbana. O argumento central desse instrumento é o de que dessa forma possibilita-se "parcerias" entre o Poder Público e o setor privado, através das quais o capital privado, interessado na compra do "solo-criado", acaba financiando a recuperação da cidade, naquele trecho específico. Segundo seus defensores, esse instrumento permitiria que renovações urbanas saiam "de graça" para o poder executivo municipal. Entretanto, a Operação Urbana é certamente um dos instrumentos mais polêmicos do estatuto, pois pode ser utilizado apenas para responder aos interesses dos setores imobiliários da cidade. Isso ocorreu, por exemplo, nos casos de Operações Urbanas já ocorridos na cidade de São Paulo, em especial na conhecida Operação Urbana Faria Lima.

Como pela lei os recursos arrecadados nas Operações Urbanas com a venda de solo-criado devem ser exclusivamente aplicados na melhoria da infra-estrutura viária da própria área da operação, têm-se essa impressão de que as avenidas saem "de graça" para a cidade, financiadas pela iniciativa privada. Entretanto, se a operação urbana se propõe a "vender" solo-criado para arrecadar fundos para a melhoria viária, estima-se que ela só possa ocorrer em áreas onde o mercado tenha interesse em comprar, sem o que a operação torna-se, no jargão do mercado, um "mico". Entretanto, assiste-se à uma "corrida" para definir áreas de Operações Urbanas, sob o forte argumento de que assim a cidade toda estará sendo "renovada" às custas do capital privado. Porém, o que ocorre de fato é que as decisões de políticas de planejamento urbano acabam subordinando-se aos interesses do mercado e, para evitar "micos", o Poder Público tem de fazer investimentos prévios para sinalizar ao mercado que a área valerá o investimento. Esses investimentos nunca são computados nos custos das operações, evidentemente, e se a operação não "colar", os prejuízos aos cofres públicos serão enormes. Já comentamos acima como a região da Faria Lima, em São Paulo, recebeu milionários recursos públicos viários em áreas que "coincidentemente" estavam na região da Operação Urbana, mas que não foram computadas em seu custo. Além disso, as desapropriações para abertura de novas avenidas gera processos judiciais e precatórios, que também não entram no cálculo "oficial", escamoteando o real prejuízo público gerado pela operação. Ainda no caso de São Paulo, estima-se que esses precatórios superem R$ 1 bilhão na Av. Faria Lima, e a Av. Águas Espraiadas, área de uma nova Operação Urbana, custou outro bilhão para ser feita (com a canalização do córrego), antes mesmo do início da operação.

Alguns urbanistas defendem a criação de títulos financeiros, os CEPACS, negociáveis na bolsa, correspondendo ao estoque de área construída "a mais" a ser disponibilizada na operação. Assim, lança-se no mercado papéis representando os metros quadrados a construir, que podem ser comprados por qualquer um. Dessa forma, o Poder Público arrecada de uma só vez o valor necessário à obra de urbanização, não tendo que adiantar esses fundos. Porém, além do riso desse recurso (pois o CEPAC pode não Ter sucesso na bolsa e tornar-se outro "mico"), ele subordina de vez a política urbana aos interesses e á lógica do mercado, já que, por incrível que pareça. Uma pessoa que nem sequer tenha terreno na área da operação pode adquirir o título para negociá-lo no mercado financeiro.

Uma das formas de evitar essas distorções estaria na possibilidade de ampliar as áreas territoriais destinadas às operações urbanas para além do setor de interesse do mercado, incluindo áreas com habitações precárias. Assim, seria possível criar ZEIS dentro da área da Operação Urbana, e canalizar os recursos advindos da venda de solo-criado para elas.

 

- Direito de Superfície e Consórcio Imobiliário

O direito de superfície permite a transferência do direito de uso do solo do proprietário para terceiros, por prazos determinados. Um dos mais antigos instrumentos jurídicos urbanos, embora pouco falado, esse instrumento é importante para agilizar algumas situações de necessária regularização fundiária e/ou urbanização, e para incentivar o exercício da função da propriedade urbana. Isso porque o proprietário que transferir o direito de superfície não estará abrindo mão de eventual valorização futura de seu bem. E em casos de terrenos ocupados, esse instrumento pode incentivar o proprietário a autorizar o uso do terreno, ainda mais se sua urbanização e regularização gerar uma valorização futura. O proprietário pode também transferir o direito de uso ao Poder Público – inclusive em negociações que envolvam a aplicação do IPTU progressivo – liberando-o para realizar obras de urbanização e regularização, cujo direito de uso será depois repassado aos moradores. Nesse caso, também se aplicaria o instrumento do Consórcio Imobiliário (art. 46 do Estatuto), pelo qual o Poder Público urbaniza determinada área privada sujeita ao IPTU Progressivo, adquirindo após a obra parte do terreno, deixando ao proprietário outra parte cujo valor urbanizado seja equivalente ao valor de toda a área antes da urbanização. Por fim, o Direito de Superfície pode ser útil para terrenos públicos, podendo-se transferir o direito de uso à população que o ocupa, facilitando os procedimentos de regularização.

 

- Direito de Preempção:

O Direito de Preempção talvez seja um dos instrumentos há mais tempo utilizados nos países europeus. Trata-se da prioridade dada ao Poder Público para efetuar a compra em negociações imobiliárias em determinadas áreas definidas por ele.

Ele permite ao Poder Público fazer estoque de terras destinadas à produção de habitações de interesse social, e regular a valorização fundiária de determinada área. Mais uma vez, as áreas sujeitas a esse instrumentos devem ser indicadas no Plano Diretor, o que remete seu sucesso às negociações políticas na Câmara Municipal.

É um instrumento importante especialmente em áreas centrais, já que o estado pode acompanhar as dinâmicas imobiliárias dessas áreas. Além disso, ao "segurar" a venda de imóveis em preços definidos e eventualmente congelados por determinado tempo (como ocorre, por exemplo, em Belém), o Poder Público consegue regular a valorização fundiária e imobiliária.

Entretanto, o grande limitador desse instrumento é sem dúvida a crônica falta de recursos públicos, exacerbada pelas opções macro-econômicas e pela Lei de responsabilidade Fiscal, o que restringe seriamente a possibilidade do Poder Executivo Municipal efetivar os negócios a ele oferecidos pelo Direito de Preempção.

Temos então que os instrumentos tributários e de indução ao desenvolvimento urbano, especialmente aqueles propostos no Estatuto da Cidade, podem sim promover o início de uma novo papel para os municípios no controle dos processos de produção urbana, dando-lhe o necessário sentido democrático e de justiça social. Entretanto, as reflexões aqui apresentadas mostram como esse será sem dúvida um caminho ainda longo, que depende de um processo paulatino de consolidação de uma cultura política que veja o Estado como o legítimo controlador da função social das propriedades urbanas e indutor do crescimento das cidades segundo o interesse público. Nesse processo, o papel dos grupos organizados da sociedade civil sempre será central e imprescindível para que a história do Estatuto da Cidade continue em seu difícil, mas até agora efetivo, caminho para garantir a reversão da extrema desigualdade e exclusão sócio-espaciais apresentadas pelas cidades brasileiras.

 

Referências Bibliográficas

ARRIAGADA, Camilo; "Pobreza en América Latina: Nuevos escenarios y desafios de políticas para el hábitat urbano". Santiago do Chile, CEPAL/ECLAC - División de Medio Mabiente y Assentamientos Humanos, Série Medio Ambiente y Desarrollo, nº27, outubro de 2000.

BUENO, Laura M. de Mello; "Projeto e favela: metodologia para projetos de urbanização", Tese de Doutoramento, São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2000.

CLICHEVSKI, Nora; "Informalidad y segregación urbana en América Latina: una aproximación", Santiago do Chile: CEPAL/ECLAC - División de Medio Mabiente y Assentamientos Humanos, Série Medio Ambiente y Desarrollo, nº28, outubro de 2000.

DEÀK, C. e SCHIFFER, S.; "O processo de urbanização no Brasil". Edusp/Fupam, São Paulo, 1999.

FERREIRA João S. W., e FIX, Mariana; "A urbanização e o falso milagre do CEPAC" , in Folha de S.Paulo, "Tendências e Debates", 17 de abril de 2000.

FERREIRA João S. W.; "São Paulo: o mito da cidade-global", Tese de Doutorado, São Paulo: FAUUSP, 2003.

FERREIRA, João S. W. "Globalização e Urbanização subdesenvolvida", in SP em Perspectiva, Revista da Fundação SEADE, janeiro de 2001, São Paulo, Vol.14, no.4, out.dez 2000a.

FERREIRA, João S. W. "São Paulo, o mito da cidade-global: ideologia e mercado na produção da cidade" Anais do VIº Seminário Internacional de Desarrollo Urbano, Unidad Temática de Desarrollo Urbano de la Red de Mercocuidades, (Buenos Aires, 3 e 4 de julho de 2003), Prefeitura de Rio Claro, 2003.

FERREIRA, João S. W. "Gestão democrática e participativa: um caminho para cidades socialmente justas?"; Revista Democracia Viva, do Ibase. No. 18, Rio de Janeiro, setembro/outubro de 2003.

FERREIRA, João S. W. e MARICATO, Ermínia; "Operação Urbana Consorciada: diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade?", in OSÓRIO Letícia Marques (org.), "Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: novas perspectivas para as Cidades Brasileiras", Porto Alegre/São Paulo: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

FURTADO, Celso; "Brasil: a construção interrompida", Paz e Terra, Rio de Janeiro/São Paulo, 1992.

KOWARIK, Lucio (org.); "As lutas sociais e a cidade", Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1988

MARICATO, Ermínia. "Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana", Petrópolis:Vozes, 2001.

MARICATO, Ermínia. "Planejamento urbano no Brasil: As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias". In ARANTES, Otília B., MARICATO, Ermínia e VAINER, Carlos. O Pensamento Único das Cidades: desmanchando consensos, Petrópolis: Ed. Vozes, Coleção Zero à Esquerda, 2000.

MARICATO, Ermínia; "Metrópole na periferia do capitalismo", São Paulo: Hucitec/Série Estudos Urbanos, 1996.

ROLNIK, Raquel; KOWARIK, Lucio; e SOMEKH, Nadia (editores); "São Paulo: crise e mudança", São Paulo: PMSP/Editora Brasiliense, s/d.

VAINER, C. "Os liberais também fazem planejamento urbano?". In ARANTES, Otília B., MARICATO, Ermínia e VAINER, Carlos. O Pensamento Único das Cidades: desmanchando consensos, Petrópolis: Vozes, Coleção Zero à Esquerda, 2000b.

VAINER, C. "Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico". In ARANTES, Otília B., MARICATO, Ermínia e VAINER, Carlos. O Pensamento Único das Cidades: desmanchando consensos, Petrópolis: Vozes, Coleção Zero à Esquerda, 2000.

VILLAÇA, Flávio; "Espaço intra-urbano no Brasil", São Paulo: Studio Nobel/Fapesp/LILP, 2001.

VILLAÇA, Flávio; "Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil" In DEÁK C. e SCHIFFER, S; O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp/Fupam, 1999.

 

 

Topo

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

 

 

PLANO DIRETOR E AS ZONAS RURAIS

Kazuo Nakano

Introdução

Este texto tem como objetivo enunciar e discutir alguns temas problemáticos que se colocam perante o desafio de incluir as zonas rurais nos processos municipais e regionais de planejamento e gestão territoriais.

A recente aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10 257 de 10 de julho de 2001), marco jurídico importante para a efetivação do cumprimento da função sócio-ambiental das cidades e das propriedades urbanas, consolida o Plano Diretor como instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana dos municípios brasileiros. O § 2º do Artigo 40 estabelece que esse instrumento deve englobar o território do Município como um todo, abrangendo as zonas urbanas e rurais. Tal orientação implica em envolver as propriedades rurais, ao menos aquelas em locais estratégicos, na fase de leitura sócio-territorial do município e na definição de propostas para o Plano Diretor.

Do ponto de vista da regulação do uso e ocupação do solo, essa exigência é bastante coerente dada a dinâmica de crescimento horizontal das cidades que ocorre convertendo as terras rurais em urbanas. De um modo geral, essa dinâmica é dirigida pelo parcelamento clandestino ou irregular de chácaras e glebas rurais. Trata-se da lógica de transformação dos hectares rurais em metros quadrados urbanos.

A falta de uma política habitacional includente, a associação entre grupos políticos e loteadores informais, a falta de um sistema de gestão capaz de regular o mercado de terras locais, a falta de uma política fundiária capaz de ampliar e democratizar o acesso á terra urbana nas áreas mais consolidadas, dentre outros fatores, faz com que a população de baixa renda procure alternativas de moradia nos territórios informais produzidos nas periferias segregadas das cidades brasileiras. Essa expansão periférica da mancha urbana sobre as zonas rurais, baseada na ocupação de loteamentos clandestinos e irregulares, produz muitos vazios urbanos.

Tal processo gera um quadro bastante contraditório. De um lado a cidade expande avançando sobre as áreas rurais. Os perímetros urbanos, definidos em lei municipal, acomodam "clientelisticamente" as áreas que já foram ocupadas e aquelas que serão ocupadas no futuro. De outro lado, os vazios urbanos permanecem ociosos por vários anos provocando uma desintegração sócio-territorial entre os bairros e as áreas centrais da cidade, dificultando as ligações inter-bairros e elevando os custos de implantação das infra-estruturas urbanas. Daí a importância de articulação entre as estratégias de regulação do solo urbano e rural.

Do ponto de vista da dinâmica sócio-econômica, a abrangência rural e urbana no Plano Diretor justifica-se pelo imbricamento entre as atividades localizadas nesses dois âmbitos. Em diferentes municípios e regiões do país a realidade rural não se restringe somente às atividades agrícolas. Essa realidade caracteriza-se também pelo desenvolvimento de setores não agrícolas em estreitas relações com as atividades instaladas nas cidades.

Nesse sentido, a busca pela concretização de um ordenamento territorial baseado na democratização do acesso à terra urbana, no

combate à retenção especulativa de terras urbanizáveis inseridas na malha viária e na regularização fundiária articulada com redução de riscos ambientais e melhorias urbanas deve ser observado em conjunto com a destinação sócio-econômica das terras rurais.

Porém, obstáculos precisam ser superados e discussões devem ser aprofundadas para a efetivação de um planejamento e gestão territoriais que ordene, de modo articulado, as formas adequadas e justas de apropriação das terras urbanas e rurais. O propósito desse trabalho é trazer algumas contribuições para o desenvolvimento dessas discussões. Destacamos os seguintes tópicos:

 

A distribuição rural e urbana da população brasileira

Os dados dos Censos Demográficos brasileiros produzidos na segunda metade do século XX mostram grande incremento da população urbana acompanhado por decréscimo significativo da população rural. A tabela a seguir, elaborada pelo IBGE, confirma essa afirmação. Em 1950, 36,16% da população nacional vivia em perímetros urbanos e 63,84% viviam nas áreas rurais. Em 2000 ocorre uma inversão. Nesse ano, 81,25% dos brasileiros residiam em perímetros urbanos e somente 18,75% habitavam as áreas rurais.

Entretanto, esses dados são questionados por José Eli da Veiga que defende a necessidade de considerar outras variáveis para efetuar o cálculo desses percentuais como, por exemplo, o número de habitantes e a densidade demográfica, dada a existência de milhares de municípios com baixo número de habitantes, reduzida densidade demográfica e localizados fora de regiões metropolitanas e outras aglomerações urbanas. Segundo o autor, "de um total de 5 507 sedes de município existentes em 2000, havia 1 176 com menos de 2 mil habitantes, 3 887 com menos de 10 mil, e 4 642 com menos de 20 mil" Para Veiga "não se deveriam considerar urbanos os habitantes de municípios pequenos demais, com menos de 20 mil habitantes. Por tal convenção, que vem sendo usada desde os anos 50, seria rural a população dos 4 024 municípios que tinham menos de 20 mil habitantes em 2000, o que por si só derrubaria o grau de urbanização do Brasil para 70%".

População

Brasil

Total

2000

1996

1991

1980

1970

1960

1950

Urbana

137.953.959

123.076.831

110.990.990

80.437.327

52.097.260

32.004.817

18.782.891

Rural

31.845.211

33.993.332

35.834.485

38.573.725

41.037.586

38.987.526

33.161.506

Percentual

Urbana

81,25

78,36

75,59

67,59

55,94

45,08

36,16

Rural

18,75

21,64

24,41

32,41

44,06

54,92

63,84

    Notas: 1 - Para 1950: População presente

               2 - Para 1960 até 1980: População recenseada

               3 - Para 1991 até 2000: População residente

               4 - Para 1950 até 1960: Os dados referentes ao nível Brasil incluem a população da região da Serra dos Aimorés, área de litígio entre Minas Gerais e Espírito Santo

    Fonte: Censo Demográfico

 

O mapa abaixo classifica os municípios segundo faixas populacionais. Essa espacialização de dados permite visualizar as áreas de concentração da população urbana no Brasil do ano 2000. A partir das pesquisas sobre os padrões excludentes da urbanização em nossas grandes e médias cidades, podemos inferir que essas áreas manifestam os graves problemas das desigualdades sócio-territoriais e da pobreza urbana que engendram cidades socialmente injustas que explodem diariamente nas ocorrências da violência urbana.

 

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2000

Diante desses problemas presentes nas áreas inequivocamente urbanas, é inegável a necessidade de implementar ações de planejamento e gestão territoriais de cunho redistributivista, articulados com políticas sociais intersetoriais. Entretanto, os pequenos municípios com menos de 20 mil habitantes também precisam iniciar a construção de um sistema local de planejamento e gestão territorial caso tenham extensas áreas rurais com usos diversos e venham registrando ritmos acelerados de crescimento populacional e urbano.

A articulação intermunicipal é uma medida válida nesses casos. Conforme o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor é obrigatório para os municípios integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; onde o Poder Público municipal pretende utilizar os instrumentos de indução do cumprimento da função sócio-ambiental da propriedade urbana; integrantes de áreas de especial interesse turístico; inseridas em áreas de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental. É imprescindível realizar um mapeamento dos municípios que se enquadram nesses e em outros critérios. Tal mapeamento permitirá dimensionar o universo das pequenas cidades brasileiras que necessitam preparar estratégias para o planejamento e gestão dos seus territórios e evitar, no futuro, o acúmulo de déficits sociais e passivos ambientais registrados nas cidades maiores.

A leitura sócio-territorial da zona rural

A leitura sócio-territorial da zona rural deve orientar-se pelos objetivos preliminares do Plano Diretor. Tais objetivos orientam a coleta, sistematização e análises das informações e a enunciação dos problemas a serem abordados na elaboração de propostas para um novo ordenamento territorial local. Trata-se de uma leitura intencional voltada para a consolidação de subsídios sólidos capazes de referenciar as definições de propostas e estratégias a serem incorporadas no Plano Diretor.

A leitura sócio-territorial da zona rural deve analisar as tendências de desenvolvimento das atividades agrícolas e não agrícolas. A disponibilidade de um zoneamento ecológico-econômico pode fornecer informações valiosas para as análises. A definição de um macrozoneamento rural depende de informações sobre:

O cadastro georreferenciado dos imóveis rurais, mapeando as características das propriedades agrícolas, é uma das informações básicas para visualização da estrutura fundiária na zona rural. Entretanto, a construção dessa informação enfrenta muitas dificuldades. No Brasil ainda não existe um cadastro completo, atualizado e acessível desses imóveis. O INCRA não possui essa informação organizada e os registros nos Cartórios de Imóveis apresentam deficiências.

Com relação às atividades produtivas, é importante analisar as formas de organização da produção e dos produtores. Nessa análise cabe uma investigação sobre eventuais arranjos e cadeias produtivas e as respectivas condições dos seus trabalhadores.

A elaboração da leitura sócio-territorial das zonas rurais é também um processo de análise das relações políticas e econômicas entre os atores coletivos presentes nesse território. Vale observar a presença ou não de latifundiários e usineiros, junto com o grau de coesão entre os pequenos produtores, a existência ou não de cooperativas, a consolidação da agricultura familiar, dentre outros aspectos relacionados à conformação dos grupos de interesse.

Em geral, as zonas rurais possuem áreas de interesse para preservação ambiental com importantes mananciais hídricos, nascentes, cursos d’água, maciços vegetais, solos agriculturáveis, dentre outros recursos naturais. É importante qualificar a diversidade e as condições de preservação desses recursos e, em caso de deterioração, a capacidade de recomposição, por exemplo, de maciços vegetais e matas ciliares.

O desenvolvimento da agroindústria, a monocultura, a mecanização da produção agrícola, o uso de agrotóxicos, a prática de queimadas, dentre outras ações, tem gerado impactos ambientais que precisam ser submetidos a análises precisas. Tais impactos geram passivos ambientais que precisam ser avaliados. É preciso investigar as condições das áreas de preservação permanente, as reservas legais, as ocorrências de erosão, o assoreamento dos cursos d’água, a ocorrência ou não de contaminação do solo e dos recursos hídricos.

Quanto ao solo, é imprescindível identificar as áreas agriculturáveis e não agriculturáveis. E dentre essas últimas, analisar as possibilidades de uso e ocupação para fins diversos. É importante ter o perfil planialtimétrico da zona rural pois as declividades condicionam as formas de mecanização da produção e do cultivo. Nesse sentido, as áreas com maiores declividades, com solo favorável ao plantio, pode-se desenvolver produção intensiva baseada em pequenas propriedades, na escala familiar.

Assim como na zona urbana podem ocorrer conflitos entre os usos residenciais e não residenciais a partir da geração de incômodos como, por exemplo, ruídos, emissão de poluentes e geração de tráfego, na zona rural tais conflitos podem aparecer entre formas de produção agrícola e áreas de expansão urbana ou de urbanização específica. Por exemplo, as grandes queimadas da cana-de-açúcar geram não somente situações de incomodidades, provocados pela fumaça e fuligens, mas também de perigo de vida real trazido pelo fogo. O uso de agrotóxicos pode gerar conflitos da mesma ordem. A resolução de conflitos desse tipo exige, necessariamente, um encaminhamento político que irá nortear a construção da proposta para um macrozoneamento rural.

O macrozoneamento rural

Como mencionado anteriormente, a sistematização da leitura sócio-territorial das zonas rurais condiciona-se pelos objetivos do Plano Diretor expressos no macrozoneamento urbano e rural. Obviamente, as orientações do macrozoneamento urbano são distintas do rural. As variáveis consideradas em um ou outro são diferentes. Entretanto, ambos são a base para o planejamento territorial e nada mais são do que a destinação sócio-econômica e ambiental das diferentes partes do município.

No macrozoneamento urbano se identificam as áreas prioritárias, secundárias e restritas para o incremento da ocupação e do adensamento. Essa identificação é feita, basicamente, a partir das capacidades de suporte das redes de abastecimento de água, coleta de esgoto, energia elétrica, fornecimento de gás, de transporte coletivo, do sistema viário, das orientações geotécnicas e dos riscos sócio-ambientais. Nesse macrozoneamento inscrevem as diferentes categorias de áreas especiais como, por exemplo, de interesse social, de interesse ambiental, de preservação histórico-cultural, de preservação da paisagem urbana, dentre outras. Dependendo do contexto local, cabem definições de áreas especiais para a agricultura urbana.

No macrozoneamento rural é importante identificar áreas com solos, topografia, acessibilidades e infra-estruturas adequadas para as diversas formas de produção agropecuária, extração vegetal, exploração mineral, usos não agrícolas como, por exemplo, turismo, chácaras de veraneio, moradias permanentes, dentre outras. O princípio da democratização do acesso à terra rural deve orientar a demarcação dessas macrozonas. Assim como o princípio da sustentabilidade ambiental deve orientar a classificação das áreas de preservação permanente e de reserva legal segundo o estado de conservação dos recursos naturais e sua capacidade de regeneração nos casos de degradação. Tal princípio deve nortear também a identificação dos locais com maciços vegetais compostos por diversas espécies, em distintos estágios de preservação.

De um modo geral, as partes da zona rural contíguas à zona urbana apresentam-se em processos de conversão de uso da terra e de reestruturação fundiária. Nessas áreas há uma imbricação entre territórios urbanos e rurais característica dessa transição entre formas diferentes de apropriação do solo. Dependendo do ritmo e padrão da expansão urbana, esses processos podem ser mais ou menos acelerados. Dependendo da consolidação do sistema municipal de planejamento e gestão territorial, esses processos podem ser mais ou menos regulados.

Essas áreas periurbanas, ou rurbanas, ou do entorno urbano imediato, guardam características indefinidas. As ocupações apresentam baixos graus de consolidação. Muitas vezes essas áreas são encaradas como problemas mas, se observarmos bem, podemos verificar a existência de várias potencialidades que podem ser convertidas em soluções. Por exemplo, essas áreas podem ser aproveitadas para introduzir novos padrões de produção agrícola intensiva, com alto valor agregado e articulados com a política municipal de abastecimento, capazes de constituir alternativas de geração de emprego e renda para os moradores dos bairros periféricos.

Em certos locais, a demarcação dessas áreas do entorno urbano imediato no macrozoneamento rural é indiscutível. Porém, a definição de diretrizes para a formulação de uma política agrícola municipal, em articulação com a política de abastecimento, pode entrar em conflito com o Direito Agrário que é de responsabilidade constitucional da União. O Município tem o poder de destinar e restringir áreas para a produção agrícola? Pode indicar, no seu Plano Diretor, que tipo de produção deve ser estimulada e incentivada nas áreas agriculturáveis? O aprofundamento dessa questão é urgente e imprescindível.

O parcelamento do solo rural

Dentre as informações a serem trabalhadas na leitura sócio-territorial da zona rural apontamos, como uma análise relevante, a caracterização dos tipos de loteamentos clandestinos. Tal destaque se deve à recorrência desse tipo de ocupação em vários municípios brasileiros, notadamente naqueles que estão crescendo aceleradamente.

As contradições inerentes a esse processo e suas conseqüências sociais já foram anunciadas na introdução deste trabalho. Essa realidade impõe a pauta sobre a regulação municipal do parcelamento urbano na zona rural. Porém, como o município pode efetivar a regulação desse tipo de ocupação que está se alastrando em diversas regiões brasileiras?

Proibir a ação pura e simplesmente não funciona. Os loteamentos ocupados nas zonas rurais de vários municípios paulistas e nas diversas áreas de interesse ambiental, especialmente nas áreas de proteção aos mananciais da Região Metropolitana de São Paulo, confirmam essa afirmação.

O INCRA, responsável pelo estabelecimento dos módulos mínimos das unidades de produção agrícola nas diversas regiões brasileiras, possui uma instrução que dispõe sobre parcelamentos urbanos em zona rural. Trata-se da instrução .... com conteúdos genéricos e insuficientes para o controle desse tipo de ocupação. Porém, cabe ao INCRA instruir isoladamente sobre essa matéria?

O Município tem a responsabilidade constitucional de legislar sobre assuntos de interesse local. A regulação das formas de uso, ocupação e parcelamento do solo no território municipal é, inegavelmente, de interesse local. Portanto, o Município deve tomar para si a responsabilidade de exercer essa regulação que, certamente, envolverá negociações e articulações com o INCRA.

Uma alternativa para viabilizar essa regulação municipal é instituir novo perímetro urbano, demarcar zona de expansão urbana ou definir zona de urbanização específica, nos termos da Lei Federal 6766/79, abrangendo os núcleos já existentes e as áreas de interesse para a realização de novos parcelamentos urbanos.

Vale ressaltar a importância dessas demarcações serem coerentes com o macrozoneamento rural e vir acompanhadas por medidas de combate aos vazios urbanos e instrumentos urbanísticos que ampliem democraticamente o acesso à terra na área urbana consolidada. A adoção dessas medidas e a aplicação desses instrumentos devem ser prioritárias tendo em vista o objetivo principal do Plano Diretor: promover o desenvolvimento e a expansão urbana de forma socialmente justa e ambientalmente equilibrada.

A regularização das ocupações na zona rural

Em alguns municípios, moradores de núcleos clandestinos e irregulares implantados na zona rural tem pressionado os governos locais, inclusive via Ministério Público, reivindicando a regularização fundiária e urbanística. São moradores com diversos níveis de rendimento, principalmente níveis médios. Trata-se de residentes em condomínios fechados, loteamentos populares e loteamentos de padrão médio.

A irregularidade das ocupações urbanas na zona rural é multifacetada. Não são todas as situações que são regularizáveis. Para cada situação exige-se uma estratégia específica. Apesar das ações de regularização fundiária e urbanística poderem ser implementadas independente do Plano Diretor, é importante articular essas estratégias no sistema de planejamento e gestão territorial do Município evitando regularizações ad hoc mediante termos de ajustamento de conduta pontuais.

A regularização das ocupações na zona rural deve ser bastante criteriosa, especialmente nos locais com muitos vazios urbanos. Há sempre a preocupação em não induzir o surgimento de outras ocupações, principalmente em áreas distantes do perímetro urbano.

É imprescindível definir claramente os critérios para identificação dos núcleos regularizáveis. Por exemplo, os núcleos implantados até uma data limite, próximos às sedes dos distritos rurais, ocupados pela população de baixa renda, em estágio avançado de consolidação, localizados fora das áreas de risco e de interesse ambiental, dentre outros.

E os núcleos ocupados por grupos de renda média e alta? Estes precisam ser analisados com mais cuidado. Podem ser regularizados mediante contrapartida financeira desde que preencham os critérios pré-estabelecidos.

Se for possível, o Plano Diretor pode identificar todas ou parte das áreas regularizáveis localizadas na zona rural. Pode trazer também as estratégias e instrumentos para efetivar a regularização. Para isso, é imprescindível mapear e traçar o perfil social, econômico e territorial de todos os núcleos na fase da leitura. Caso esse mapeamento e análises não se viabilizem, pode-se detalhar um plano de regularização urbanística e fundiária em lei complementar. Contudo, é fundamental estabelecer no Plano Diretor os critérios básicos para identificação dos núcleos regularizáveis, as estratégias para a efetivação das ações de regularização, os parâmetros para a adequação urbanística, as definições de responsabilidades dos atores sociais envolvidos (poder público, moradores e loteadores).

Como em qualquer ação de regularização fundiária e urbanística, é importante a adoção de medidas preventivas capazes de evitar a produção de novos núcleos clandestinos e irregulares. As partes desocupadas dos núcleos parcialmente construídos podem retornar à condição de gleba. É importante o poder público usar seu poder de polícia na fiscalização e controle dos loteamentos e condomínios clandestinos e irregulares localizados nas zonas rurais interditando, embargando e até demolindo novos núcleos. Entretanto, o exercício desse poder de polícia da administração não pode ser uma ação isolada. Deve estar articulada com estratégias para a democratização e ampliação do acesso à terra urbana em áreas adequadas. O sentido do poder de polícia da administração na regulação territorial não é pura e simplesmente proteger a propriedade, é garantir o cumprimento da função social da propriedade.

Referências bibliográficas

BRASIL (2001). Estatuto da Cidade – guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações.

MATTOS, L. P. (org.) (2002). Estatuto da Cidade Comentado. Belo Horizonte: Mandamentos.

VEIGA, J. E. (2003). Cidades Imaginárias – o Brasil é menos urbano do que se calcula. Campinas: Autores Associados.

Pode ser estratégico envolver a Procuradoria do Município, o Ministério Público e a Corregedoria nas discussões para consolidar essas propostas e critérios.

 

Topo

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

 

Plano Diretor para Pequenos Municípios

Geraldo Marinho

 

1. Delimitando o universo

 

A abordagem do tema sobre planos diretores para pequenos municípios requer inicialmente que se discuta o que se toma por "pequenos municípios". O que se tomará aqui para classificar pequenos municípios compreende alguns diferentes intervalos, tomando como marco inicial a referência constitucional de limite de vinte mil habitantes, que define a exigência de realização de um Plano Diretor. Desta forma se poderiam adotar, no universo daqueles que têm a obrigação de implementar seu Plano Diretor, um primeiro grupo entre vinte e cinqüenta mil habitantes e outro entre cinqüenta e cem mil habitantes – este último, que não se poderia propriamente chamar de pequeno, particularmente no contexto de regiões pouco populosas.

Mas e quanto aos municípios que não têm a obrigação de fazer o Plano Diretor? Em se tratando deste Grupo Temático, tal universo representa 4.059 municípios e, embora possam não sofrer da mesma escala de problemas urbanos dos grandes centros, seguramente vivenciam uma carência de definição de diretrizes e instrumentos para orientar seus padrões de desenvolvimento urbano. Este mesmo grupo, por sua vez, poderia ser subdividido tendo em vista o perfil da distribuição dos municípios no país segundo o tamanho de sua população. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considerou uma divisão entre aqueles com até cinco mil habitantes e entre cinco e vinte mil, na sistematização dos dados do Perfil Municipal 2001.

O Brasil conta atualmente com um total de 5.560 municípios, que abrigam uma população que se aproxima de 170 milhões de habitantes. Em relação à quantidade de municípios, observa-se que 73% destes encontram-se na faixa até vinte mil habitantes, sendo que quase a metade do total tem população entre cinco e vinte mil habitantes. A quase totalidade destes, portanto, está legalmente desobrigado de implementar o Plano Diretor – mas não deveria abrir mão de construir seu referencial para o trato do seu território e de orientação do seu desenvolvimento urbano.

Tabela 1 - Distribuição dos municípios no Brasil pelo seu porte populacional e taxa de crescimento no número de municípios por categoria em relação ao Censo de 1991 (IBGE Censo 2000)

 

 

Gráfico 1 - Distribuição dos municípios no Brasil pelo seu porte populacional (IBGE Censo 2000; Perfil Municipal 2001)

 

Considerando aquele universo dos que têm a obrigação da elaboração do Plano Diretor, e dentro do intervalo entre vinte e cem mil, observa-se que, apesar destes municípios representarem numericamente apenas 22,7% do total das unidades municipais do país e terem apresentado as menores taxas de crescimento dentro do cenário nacional entre os Censos de 1991 e 2000 – onde se destaca a criação de muitos novos municípios de até 5 mil habitantes e um crescimento significativo naqueles com população superior a 100 mil habitantes – sua importância se destaca não apenas pela parcela de população que abriga, com 29,3% da população nacional, mas também pelo fato de representarem um conjunto que, em geral, já apresenta um grau de complexidade urbana relevante, o que constituiu fator de justificação para a exigência constitucional de realização de Planos Diretores.

O gráfico da página seguinte exibe a distribuição da população pelas categorias de tamanho do município e revela o peso que representam os municípios com mais de cem mil habitantes, sugerindo uma comparação com o gráfico anterior, referente apenas ao número de municípios.

Gráfico 2 - População segundo o porte do Município (IBGE Censo 2000)

 

Tais categorias de dimensionamento aqui consideradas, então, guardam diferenças enormes em relação somente ao que se possa associar à quantidade de habitantes que abrigam. Contudo, outros fatores podem criar uma significativa distância entre dois municípios de mesmo porte, apenas se considerada sua inserção regional – Assis Brasil, no Acre, seguramente terá um perfil substancialmente distinto de Jacutinga, no Rio Grande do Sul, por razões ambientais e econômicas, por exemplo.

Assim, falar de Planos Diretores para pequenos municípios contempla uma diversidade de situações infinitamente maior que aquilo que poderia aparentar inicialmente – e sugere, ou exige, cuidados metodológicos cruciais ao longo de um processo para sua elaboração.

Para os fins de análise e para orientação às municipalidades na elaboração de seus Planos Diretores, poderiam ser considerados três fatores principais para delimitar uma classificação que vai além da sua dimensão populacional. Esta classificação geral se propõe a oferecer grandes marcos iniciais que poderiam agregam grupos de municípios que partilham de algumas características comuns e para os quais se poderiam traçar orientações específicas com respeito aos métodos e procedimentos a serem enfrentados no seu exercício de planejamento. As referências básicas para esta classificação são o grau de urbanização, a inserção do município dentro de uma divisão de grandes marcos ambientais e o seu papel dentro de uma rede hierárquica de âmbito regional.

 

2. A construção de Planos Diretores para os Pequenos Municípios

A indagação a respeito de especificidades de pequenos municípios não se resume, portanto, à dimensão da quantidade de residentes em si, mas na identificação de fatores outros que, sobrepostos à escala ou porte daquele município possam se configurar em elementos norteadores da construção de seu Plano Diretor. Neste sentido, uma leitura acerca do seu lastro institucional e níveis de mobilização social são decisivos.

De modo geral os municípios de pequeno, e mesmo médio porte, têm dificuldades operacionais para levar adiante uma prática de planejamento e gestão urbana pela absoluta falta de estruturas administrativas, pessoal qualificado e instrumental apropriado de trabalho.

O Perfil Municipal do IBGE revela que enquanto 78,8% dos municípios com mais de cem mil habitantes contam já com Plano Diretor, apenas 10% dos municípios com até vinte mil habitantes encontram-se na mesma situação e entre aqueles que estão num intervalo entre vinte a cem mil habitantes, só 31% possuem Plano Diretor.

Por outro lado, embora a mesma pesquisa tenha revelado um esforço de atualização com variações entre 40% e 57% dos municípios com cadastros imobiliários realizados nos últimos cinco anos, a prática de arrecadação do imposto predial e territorial urbano é frágil no cenário geral dos municípios pequenos, especialmente nas regiões mais pobres do país. O que torna por exemplo, deslocada a discussão da aplicação de instrumentos consagrados na Constituição Federal e Estatuto das Cidades, como o IPTU progressivo, ao menos no horizonte de médio prazo – somando-se a isto o fato que a própria dinâmica urbana de tais municípios dificilmente apresentarem situações de especulação numa escala significativa.

No tocante à articulação com outras esferas, afora no campo da saúde e na aquisição de máquinas e equipamentos os percentuais revelados na pesquisa quanto à prática de ações consorciadas entre municípios é mínimo, revelando outra face de uma fragilidade institucional que não favorece a criação de processos mais amplos na discussão dos Planos Diretores.

O quadro referente à existência de conselhos revela que as áreas de saúde e educação contam sempre com percentuais elevados, na ordem de 90%, mas outras áreas estratégicas com relação ao Plano Diretor apresentam resultados pouco expressivos, como no exemplo da habitação em que 13% os municípios entre vinte e cem mil habitantes, mas ainda assim, deste total um quarto se encontra desativado. Percentuais na ordem de 9% são registrados para municípios até vinte mil habitantes, com um terço de inatividade. Conselhos de política urbana existem em não mais que 3% dos municípios até vinte mil habitantes, e não chegam a 10% na categoria daqueles entre vinte e cem mil residentes.

De fato, os complexos formatos de mobilização presentes nas grandes metrópoles não se verão reproduzidos nos municípios de pequeno porte e os instrumentos usuais naquela escala maior, com a multiplicidade de arenas representativas e mecanismos de participação, podem não fazer o mesmo sentido para uma estrutura social de uma pequena cidade.

 

3. Considerações sobre a experiência de Pernambuco

Em Pernambuco, alguns anos antes da aprovação do Estatuto das Cidades, deu-se início a um processo de valorização dos instrumentos do planejamento regional e local que hoje resulta na realização de um número significativo de Planos Diretores em municípios de médio e pequeno porte.

Uma tradição de planejamento aliada a uma conjuntura política muito específica – marcada por uma oportunidade singular de realização de investimentos em decorrência da privatização da concessionária de eletricidade, conduzidos sob a batuta de uma ala mais à esquerda de uma coalizão conservadora – fez com que se reacendesse um processo de promoção do planejamento regional e local. Ao lado da elaboração de planos para as regiões de desenvolvimento do Estado estão sendo elaborados planos locais em parceria entre administrações municipais e governo estadual. Isto se deu, num momento inicial, com a realização das chamadas Plantas Diretoras e, atualmente, se expande na elaboração de Planos Diretores municipais contratados com recursos estaduais.

A proposta de elaboração de Plantas Diretoras surgiu de uma combinação de fatores que interligam aspectos políticos-institucionais e aspectos territoriais e ambientais. Amparava-se na necessidade de efetivação de uma ação pública reguladora, em caráter de emergência, sobre processos urbanos em curso que têm comprometido a qualidade de vida e as perspectivas de desenvolvimento de alguns municípios. A dinâmica de crescimento urbano e de renovação e diversificação de atividades econômicas em determinadas regiões no Estado de Pernambuco têm levado ao surgimento tanto de oportunidades para a melhoria dos padrões atuais de desenvolvimento, como também têm evidenciado problemas novos, exigindo respostas que demandam uma integração e complementação entre as ações do Governo do Estado e das Administrações Municipais.

A Planta Diretora se constituiu, assim, como um instrumento nascido da ação conjunta do Estado e do Município para suprir lacunas imediatas em termos de planejamento e regulamentação sobre uso e ocupação do solo, servindo como base para o desenvolvimento de um conjunto mais amplo de planos e normas de foco local. Na expressão registrada no plano Litoral de Pernambuco – um Estudo Propositivo, "este instrumento de apoio ao planejamento, de nível intermediário entre o Plano Diretor Municipal e a Legislação Urbanística Básica – Lei de Uso e Ocupação do Solo – se propõe inclusive a subsidiar, de forma complementar, o exercício da competência municipal no controle do ordenamento e do uso e ocupação do solo."

Nestes termos a idéia de uma Planta Diretora se diferenciava, metodologicamente, de outros instrumentos, sendo tomada como instrumento que antecede e dá elementos iniciais para a realização de um Plano Diretor ou Lei de Uso e Ocupação do Solo, a serem elaborados em futuro próximo, os quais contemplarão, com maior aprofundamento, os estudos e as soluções que as especificidades de um município requerem. Desta forma, a Planta Diretora contemplava elementos de caráter normativo ao mesmo tempo em que oferecia diretrizes e proposições de intervenções a serem realizadas tanto pela instância municipal como estadual. Deveria, assim, configurar-se como referencial para a integração entre Município e Estado e marco delimitador do perfil e natureza das intervenções de agentes privados sobre o território do município. Neste sentido, o processo de sua formulação, já em prática de co-responsabilidade contando com a participação de agentes diversos, oferece um lastro de legitimidade sem o qual não se poderiam alcançar os resultados desejados.

Apesar de tratar de todo o território municipal, o foco da Planta Diretora foi eminentemente urbano, e nesta dimensão foram detalhadas as análises, propostas e a definição de instrumentos para regulação da ação pública e privada. A principal expressão da Planta Diretora residia na sua versão cartográfica, que em lugar de ser tratada secundariamente como um elemento anexo, foi considerada sua principal peça de apresentação.

O panorama atual é bem mais amplo e, no contexto da aprovação do Estatuto da Cidade, optou-se pela realização de Planos Diretores, com enfoque eminentemente territorial, sem a pretensão de constituir-se num amplo plano de desenvolvimento. Dentro da estratégia estadual de identificar e estimular sub-regiões a partir de seus potenciais econômicos específicos, foram apresentados Planos Diretores para seis municípios que se acham naquele que é considerado principal eixo rodoviário estruturador do Estado - a rodovia BR 232 - , englobando parte da Zona da Mata e do Agreste. Na Região Metropolitana, cinco municípios contemplados com Planos Diretores, também de forma integrada com a administração estadual. Para a Zona da Mata, uma programação de maior escala prevê atender, em curto prazo, os 36 municípios que ainda não contam com Planos Diretores, com recursos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável da Zona da Mata de Pernambuco (Promata), financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). No Agreste a chamada "rota da moda" – região que agrega um conjunto expressivo de empreendimentos informais no ramo das confecções – deverá ser contemplada com a realização de Planos Diretores para quatro municípios. Por fim, encontra-se em discussão uma estratégia para realização de planos de escala regional e local para uma área crítica em termos de indicadores sociais no Estado, contemplando onze municípios vizinhos das regiões do Agreste Meridional e Moxotó, que apresentam os piores resultados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

 

4. Desafios e perspectivas

Tem sido comum no Brasil a alimentação de grandes expectativas sobre mudanças no instrumental normativo como forma de consagrar conquistas sociais. Há riscos, e um dos principais pode ser justamente o da frustração após um grande investimento institucional na elaboração de um Plano Diretor que não resulte em mudanças efetivas ou numa reorientação das políticas urbanas locais. E tal fenômeno poderá ser tanto mais provável quanto menor seja uma real mobilização social em torno do processo de realização e implementação de um Plano Diretor.

A título de síntese, quatro aspectos poderiam ser ressaltados como recomendações para o contexto específico da elaboração de Planos Diretores para municípios de pequeno porte. O primeiro deles é a identificação clara dos problemas prioritários a se enfrentar, na escala do município, refletindo as suas especificidades, evitando-se repetir modelos e soluções supostamente arrojadas, espelhadas nos processos e instrumentos aplicados em grandes centros urbanos.

O segundo aspecto diz respeito a uma imprescindível leitura e articulação na escala regional, reconhecendo-se que o foco necessário no município não pode se constituir em fator limitante para uma compreensão do papel deste no contexto de uma rede urbana mais ampla abrangendo o cenário microrregional e as relações com as principais cidades no Estado.

O terceiro refere-se à necessidade de buscar uma integração e apoio institucional da esfera estadual e, na medida do possível, federal. Sem tal apoio dificilmente as estruturas existentes das administrações locais terão condições de arcar com todo o esforço de realização do Plano Diretor, particularmente no que diz respeito à mobilização de pessoal qualificado e sistemas de informações estruturados.

O último aspecto remete à dimensão política do planejamento, reconhecendo-se que há sujeitos e interesses distintos no contexto local e somente a construção de um processo aberto e representativo será capaz de dar lugar a um Plano Diretor que não se limite , mesmo que, possivelmente, o cenário de mobilização da sociedade civil local se mostre substancialmente diverso daquele conhecido dos grandes centros urbanos e requeira um instrumental mais flexível para construção de processos de diálogo.

 

Topo

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

 

 

 

Instrumentos e Metodologias de Participação Popular

na Elaboração e Discussão do Plano Diretor

 

Renato Pequeno e Olinda Marques

 

 

  1. Introdução

No sentido de conceber um procedimento para elaboração e discussão do Plano Diretor utilizando instrumentos e metodologias participativas, algumas premissas devem ser consideradas como conceitos fundamentais:

 

 

  1. O planejamento como um processo cíclico e a participação como insumo
  2. Observando-se o planejamento como um processo, podemos subdividi-lo em etapas: preparação, análise compreensiva, estruturação, operacionalização, formulação, implementação de projetos e avaliação de impactos, reconhecendo que cada etapa possui um objetivo a ser alcançado. Conseqüentemente, a participação deve se ajustar a cada fase, considerando as especificidades dos objetivos a serem alcançados. (Pfeiffer, 2000)

    Todavia, não devemos observá-las e assumi-las como partes de um processo uni-direcionado. Ao contrário, tratando-se de um processo cíclico e contínuo, verificamos a possibilidade de retomar etapas que já tenham sido cumpridas.

    Antes de darmos inicio a um processo de planejamento, faz-se necessário considerar as condições locais em que o mesmo estará se realizando. Nesta etapa de preparação do processo verificamos a situação em que nos encontramos para que possamos dar início a um processo de planejamento urbano. Além disso, esta etapa constitui-se num momento de fundamental importância, quando se podem nivelar conhecimentos e esclarecer objetivos.

    Para tanto, devemos identificar qual o conjunto de atores sociais presentes no município, assim como suas territorialidades e formas de organização, sempre observando que a construção de uma nova cidade menos conflituosa e excludente, mais harmônica e justa depende da participação de todos. Além disso, vale identificar quais os canais de participação mais efetivos para a realidade daquele município, assim como a maneira como vem se dando o processo de tomada de decisão.

    Reconhecendo a importância da participação popular para a legitimidade do processo, deve-se nesta fase dar início a um amplo programa de esclarecimento em torno do que será realizado, partindo do reconhecimento da realidade local como resultado de um processo de desenvolvimento desigual.

    A partir daí, as contribuições trazidas pelo Estatuto da Cidade, seja no campo da gestão democrática e participativa, na promoção da regularização fundiária, na indução do desenvolvimento urbano e no combate à especulação imobiliária poderão ser apresentadas. Além disso, tem-se ai a oportunidade de esclarecer o significado de um plano diretor, assim como a sua importância no sentido de solucionar possíveis problemas recorrentes na organização sócio-espacial da cidade.

    Quais os problemas mais recorrentes na organização do espaço urbano? De que maneira eles se manifestam, quais suas causas e suas conseqüências? Que atores sociais encontram-se diretamente envolvidos? Questões como estas devem ser debatidas no conjunto da sociedade, na fase inicial deste processo de planejamento especialmente no sentido de fornecer subsídios para solucioná-los. Partindo-se do esclarecimento geral sobre estas questões, partimos para sua identificação segundo as especificidades de cada lugar, ou seja, de acordo com a realidade de cada município.

    É importante ressaltar que estes problemas podem ser agrupados de forma simplificada em algumas categorias tais como: conflitos de uso e ocupação do solo; precariedade da condição de moradia e situação fundiária irregular; carência de infra-estrutura, serviços urbanos e equipamentos sociais; deficiências do sistema de circulação e transportes.

    A partir da discussão destes pontos, podemos partir para uma análise compreensiva da situação existente, especialmente naqueles aspectos referentes à cidade desigual. Partindo-se da espacialização de questões presentes na escala seja da comunidade, seja do bairro, sem esquecer a sua integração numa escala mais ampla, quando o problema assim o requerer, poderemos visualizar a cidade que temos, construindo assim um diagnóstico que retrate de forma mais verdadeira a realidade vivida nos quatro cantos da cidade.

    Nesta etapa poderemos identificar, segundo a compreensão daqueles que vivem o lugar, as principais questões de caráter local. Desta maneira, poderemos dimensionar e qualificar pontos fundamentais para um processo de planejamento urbano voltado para uma cidade mais justa, tais como: as marcas de degradação ambiental, os usos impactantes, as precariedades habitacionais, os espaços vazios, as áreas de ocupação, as demandas não atendidas, as dificuldades de acesso e de mobilidade, dentre outros. Além disso, poderemos conhecer, segundo a comunidade local quais as suas potencialidades e capacidades no sentido de contribuir com a transformação radical da realidade vivida.

    Em resposta à essa situação diagnosticada, que medidas deveriam ser tomadas no sentido de atingir uma outra realidade que reflita a cidade que queremos. Ou seja, reconhecendo a cidade como ela é, quais os caminhos que deveriam ser trilhados no sentido de transformá-la. Identificados esses caminhos, que objetivos nos guiarão para que possamos alcançar esta situação desejada, e quais seriam os programas e projetos a serem executados no sentido de atingir o desenvolvimento pretendido de acordo com a nossa realidade.

    Conhecedores dos problemas que afligem nossas cidades, como poderemos reagir de forma planejada? Que ações podem ser desencadeadas visando minimizar os conflitos de uso do solo, recuperar as marcas de degradação, reduzir as demandas reprimidas, solucionar os problemas de circulação e transporte e melhorar as condições de moradia? Como atingir uma cidade socialmente mais justa e sustentável? Afinal, se dispomos de um conjunto de instrumentos previamente apresentados e debatidos, de que maneira eles se ajustariam às questões aqui levantadas? Em que situações reais diagnosticadas eles poderão ser aplicados?

    Há que se lembrar porém, que entre a cidade desejada e a cidade possível, há uma série de barreiras a serem vencidas, especialmente quando a cidade real diagnosticada mostra-se tão distante da cidade das leis e dos planos de desenvolvimento concebidos fora da realidade e sem responder às verdadeiras necessidades da população.

    Para a construção dessa cidade possível, dessa cidade que podemos ter, é de fundamental importância a realização de uma etapa de operacionalização. Nesta fase, as intenções presentes na cidade que queremos serão abordadas e analisadas em sua viabilidade. Se planejamos segundo a realidade, é de suma importância que reconheçamos nossas limitações para que não levemos ao descrédito todo o trabalho realizado.

    Numa etapa seguinte, sabedores do que é realmente possível de ser feito, partimos para a formulação do plano verificando por onde começar segundo critérios pré-estabelecidos de diversas ordens. Afinal dentre o conjunto de projetos identificados e priorizados em que ordem cronológica eles deveriam ser executados.

    Vale aqui lembrar que os projetos desde a sua concepção até a sua implementação devem se comprometer com práticas participativas, no sentido de que eles possam vir a ser o mais facilmente assimilados pela população. Além disso, devem os projetos ser compreendidos como intervenções que visam a transformação da sociedade, e que portanto devem ter a população como fim, reconhecendo a importância e a pertinência de sua realização para a construção de uma cidade socialmente mais justa.

    Por fim, compreendendo o processo de planejamento urbano na elaboração de planos diretores, há que se considerar a importância da avaliação de impactos das proposições formuladas assim como no monitoramento dos resultados obtidos, para que se possa verificar a verdadeira transformação pretendida com o processo de planejamento. Desta maneira, poderemos analisar e compreender as mudanças que buscam a construção de uma cidade melhor para todos e todas.

    Etapas de elaboração de um PD

     

    Importância da participação

    2.1 Preparação do processo

     

    O que é um Plano Diretor

    2.2 Análise compreensiva da situação existente

     

    A cidade que temos

    2.3 Estruturação do plano

     

    A cidade que queremos ter

    2.4 Operacionalização do plano

     

    A cidade que podemos ter

    2.5 Formulação do plano

     

    O caminho para a cidade viável

    2.6 Implementação de projetos

     

    A cidade se transformando

    2.7 Avaliação de impactos dos projetos

     

    Por uma cidade melhor

     

  3. Metodologias de participação

 

3.1 Capacitação em massa em Planejamento Urbano

Para poder propor idéias, exigir providências, cobrar direitos e participar das soluções dos problemas é preciso estar capacitado em todos os campos. Especialmente quando o assunto a ser debatido é o espaço em que se vive.

Partindo dessa certeza, o CEARAH Periferia organiza, uma ação inovadora e ousada desenvolvida em Fortaleza objetivando dar um passo a mais na direção do planejamento participativo, denominada de "Capacitação em Massa em Planejamento Urbano e Pesquisa Popular".

A capacitação em massa representa uma metodologia de sensibilização que desperta o movimento popular e moradores/as em geral, para a problemática urbana, oferecendo conhecimentos na área do Planejamento Urbano, a fim de motivá-los para a participação e ação comunitária integrada, na solução dos problemas locais. Participam desta sensibilização centenas de pessoas agrupadas em oficinas temáticas que funcionam simultaneamente durante uma semana.

Realizada pela quinta vez em 2003, a Capacitação em Massa teve a participação de 1.989 participantes. A mobilização popular por meio da Capacitação em Massa é um diferencial no processo de formação da Escola de Planejamento Urbano. Chama a atenção de diversos segmentos sociais e do próprio poder público.

Sua efetivação tem motivado o apoio de várias organizações sociais, universidades, entidades privadas, parlamentares e secretarias municipais e estaduais. Em 2003, sua realização preparou a sociedade para a 1a. Conferência Nacional da Cidade em Fortaleza.

Esse conjunto de motivações profundas, de razões e paixões pela cidade forma o cidadão e a cidadã para uma prática fora da pauta da atual gestão da cidade, o planejamento participativo. Assim, a partir desse trabalho, os participantes em um processo intensivo de forma compartilhada passam a elaborar, apresentar e entregar propostas de políticas públicas.

Em linhas gerais, a capacitação em massa apresenta os seguintes objetivos:

Com um conjunto de atividades desenvolvidas como:

- Palestras e debates: quando todas as turmas debatem questões pertinentes à cidade, levando em conta o tema principal, a Participação Popular. Onde cada uma delas tratam de um tema específico, tais como:

A Trilha Cidadã tem como proposta despertar o sentimento de cidadania e de amor a nossa cidade tão desprezada pelo poder público, levando o participante a uma postura crítica propositiva para a melhoria da qualidade de vida de tod@s. As trilhas são feitas nos locais onde acontece a capacitação e é desenvolvida dentro da temática específica de cada grupo, juntamente com o diagnóstico da aula de campo. As percepções das trilhas subsidiarão um documento que se pretende entregar aos governos estadual e municipal, bem como, a Câmara Municipal e Assembléia Legislativa. Estas propostas elaboradas em coletivo durante o curso representam um olhar em massa sobre a cidade que queremos.

Durante dez dias de intensa reflexão sobre a cidade de Fortaleza os participantes em processo de capacitação obtém informações na forma de painéis e oficinas, sempre com o sentido de formar um pensamento crítico sobre as temáticas propostas, que serão fundamentais para a realização de manifestações culturais que marcam a finalização da capacitação como um conjunto de devoluções, visando a integração de todos participantes do processo.

Como resultados das atividades, tem-se ao final de dez turnos de trabalho intensivo:

 

3.2 Escola de planejamento urbano e pesquisa popular

A Escola de Planejamento Urbano e Pesquisa Popular é um espaço de troca e construção de saberes, a partir de conhecimentos entre diversos setores e populações de diferentes bairros da cidade. Contribuem com a realização da escola como facilitadores professores/as acadêmicos/as, profissionais do terceiro setor e ainda de alguns técnicos/as do poder público.

Tendo como missão estratégica formar lideranças populares para serem Pesquisadores/as Populares, capazes de intervir propositivamente no planejamento da cidade e nos diversos espaços de interlocução e negociação das políticas públicas. Sua metodologia e processo pedagógico pautados na participação efetiva de todos/as envolvidos/as têm contribuído para o resgate de valores como a auto-estima, a solidariedade, criticidade, consciência cidadã, sentimento de pertença à cidade e, sobretudo, para a recuperação da capacidade de mobilização e o vigor das lutas populares,

A Escola propõe uma formação continuada através de estratégias que consistem em assegurar que o cidadão/ã continue exercitando sua aprendizagem, desenvolvendo propostas concretas para o seu bairro, bem como participando de cursos de aperfeiçoamento, de multiplicação, de sensibilização, de pesquisas e intercâmbio, e ocupando espaços de interlocução. Desta foma, tenta garantir um contínuo processo de formação e capacitação que se materializa no cotidiano das comunidades pela multiplicação dos conhecimentos adquiridos e também pela intervenção das lideranças populares nos canais de participação.

Em síntese, podemos apontar como objetivos da Escola de Planejamento Urbano e Pesquisa Popular:

- formar cidadãos para contribuir na elaboração de diagnósticos, planos de ação e projetos de desenvolvimento comunitários;

- capacitar lideranças comunitárias para práticas de auto-gestão pelo conhecimento da realidade e do desenvolvimento de ferramentas tanto técnicas como de participação na formulação de planos e projetos;

- valorizar a participação da sociedade inserindo o cidadão na concepção de projetos;

- melhorar a capacidade propositiva e de negociação das organizações com o poder público, em relação principalmente às questões urbanas;

- fortalecer os canais de articulação com o poder local, visando a transformação da cidade;

O processo de formação apresenta três modalidades:

Curso de Formação ou de Longa Duração: O curso possui carga horária 360 horas/aula cumprida ao longo de sete ou oito meses. Dividido em quatro módulos: iniciação; formação básica; elaboração de um projeto de desenvolvimento; execução do projeto. Este último determina o diferencial da escola. É a forma mais interessante do/a aluno/a devolver à comunidade o investimento coletivo em estudos e pesquisas. Esse produto final da formação pode ser um projeto de memória (pesquisa histórica); projeto físico (como construção e urbanização) e projeto transformador (desenvolvimento, geração de renda, autogestão).

Curso de Capacitação ou de Curta Duração: O objetivo desse tipo de curso é capacitar as entidades para a autogestão comunitária, oferecendo treinamentos em secretariado, contabilidade e gestão financeira, relações interpessoais, dinâmica de grupo, entre outras práticas. Possui uma carga horária média de 40 a 60 horas e são ministrados nas sedes das associações de moradores.

Outros projetos que reforçam a escola:

Fundo de apoio a projetos auto-gestivos à FAPAG

Implementação de sistemas alternativos de financiamento as entidades comunitárias mediante projetos elaborados através da escola, para apoiar o movimento popular para o alcance da autogestão comunitária e para capacitar as mulheres em questões de saúde, direito e cidadania.

Comunicação, Informação, Difusão para Ação e Desenvolvimento: CIDADES

Trata-se de um Centro de documentação organizado para difundir os conhecimentos e experiências exitosas implementadas pela sociedade civil e poder público. Para facilitar a participação em redes, apoiar centros populares de documentação, e de recursos nos bairros para incentivar ações populares de desenvolvimento local. A Escola de Planejamento Urbano e Pesquisa Popular forma e capacita lideranças populares para uma intervenção propositiva no planejamento da cidade; assessora na elaboração, execução e avaliação de projetos comunitários, na realização de estudos e pesquisas sobre o habitat em diferentes aspectos, na edição e difusão de documentos.

Centros de apoio às iniciativas de bairro: Centros de Recursos e os PDCIS

Moradores/as do bairro Dias Macedo e Jardim Iracema tendo à frente os pesquisadores/as populares locais, elaboraram o PDCI (Plano de Desenvolvimento Comunitário Integrado) contendo diagnóstico e diretrizes para os bairros. Esse documento está servindo de subsídio para as negociações junto ao poder público.

Como fruto deste processo, a comunidade do Dias Macedo conseguiu junto ao Governo do Estado a liberação de recursos para construção de 241 (duzentas e quarenta e uma) casas em regime de mutirão para a comunidade AQUI FICO, uma grande ocupação de terra localizada dentro do bairro. O esforço também resultou em parcerias para montar numa pequena rádio comunitária e reforçar do centro de recursos (documentação), única fonte de pesquisa da população local. A comunidade do Jardim Iracema, além das melhorias habitacionais também obteve conquistas no âmbito dos serviços de transporte coletivos.

No Parque Genibaú, os Pesquisadores/as Populares criaram uma sala de atendimento à população que orienta os moradores/as onde encontrarem os serviços públicos essenciais, tais como, delegacias de defesa da mulher, atendimento ao consumidor, expedição de documentos, atendimento médico de emergência, serviços funerais gratuitos, entre outros.

 

3.3 Programa de planejamento participativo

Segundo as novas necessidades apresentadas pela realidade local, o CEARAH Periferia tem iniciado uma pesquisa em torno de novos instrumentos e metodologias de planejamento urbano participativo, tendo o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor como pontos centrais.

Reconhecendo o vazio entre a escala municipal e a da comunidade, os novos procedimentos em fase de formulação correspondem a ações descentralizadas em escalas inferiores à da cidade, visando especialmente como objetivo superior preparar a formação de conselhos de micro-bacias, micro-regiões, de bairros e de comunidades de áreas de ocupação.

  1. Estudo de caso: O Processo de elaboração do Plano Diretor de Fortaleza: resistência e luta por uma cidade socialmente mais justa
  2. A realidade atualmente vivida em Fortaleza por ocasião da revisão do Plano Diretor segundo o Estatuto da Cidade representa um caso concreto de embate entre o planejamento urbano convencional e a mobilização da sociedade civil organizada. De um lado, a tecnocracia, reunindo instituições públicas e interesses privados, imbuída em encobrir as possibilidades de uma cidade mais justa trazidas pelo Estatuto da Cidade; de outro, a sociedade civil organizada tentando promover um processo de planejamento participativo.

    Aprovado em 1992, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Fortaleza reuniu na época um conjunto de instrumentos urbanísticos capazes de promover o desenvolvimento de uma cidade socialmente mais justa, instituindo instâncias participativas e favorecendo o bairro como unidade territorial de planejamento. Todavia, passaram-se 10 anos e nada daquilo que foi introduzido no Plano Diretor, veio a ser implementado, principalmente quanto aos instrumentos urbanos. Ao longo desses anos tem-se o fechamento do Instituto de Planejamento Urbano do Município, assim como uma série de reformas administrativas que deixaram o município totalmente desgovernado quanto ao seu processo de planejamento urbano. Fato é que nosso plano diretor só vinha à tona quando se tentava promover modificações na lei de uso e ocupação do solo, favorecendo apenas o capital imobiliário.

    Ao longo desse período, a cidade pode experimentar um conjunto de instrumentos e metodologias de planejamento urbano participativo através das ações promovidas pelas ONGs, dando suporte ao movimento popular organizado em torno da questão da habitação e do subdesenvolvimento urbano.

    Ações pontuais são realizadas sempre com o intuito de trazer impactos positivos para as políticas públicas setoriais, inclusive como tentativas de construção de parcerias com o poder público local. Da mesma forma, através de programas de cooperação internacional, passa-se a investir na elaboração de metodologias de planejamento participativo voltadas para o desenvolvimento local, porém tendo nas questões urbana e habitacional seus principais focos.

    Dentre estas ações, tem-se na proposta de intervenção em áreas de risco um marco referencial. Diante do problema recorrente das enchentes no período invernoso, as organizações não governamentais juntamente com a prefeitura desenvolveram um projeto que pudesse vir a ser um modelo de prática de urbanização de áreas de risco, pautada na remoção de famílias e reassentamento em áreas vazias próximas. Além disso, o trabalho partia do princípio que o direito à moradia e à cidade são bem mais amplos que a mera provisão da unidade habitacional, reconhecendo que para que a intervenção pudesse ser exitosa outros eixos deveriam ser trabalhados como o desenvolvimento sócio-ambiental, o fortalecimento comunitário e a promoção de autonomia via emprego e geração de renda.

    O processo de avaliação desta experiência constata a postura fechada e refratária à participação do poder público. O mesmo pode ser constatado quando se fez uma proposta de uma política de habitação de interesse social pelo movimento popular e pelas ONGs. Planos, projetos e obras foram realizados, sem que no entanto houvesse qualquer assimilação de seus impactos pelo poder local, ou mesmo estadual.

    Através de um processo participativo de avaliação e debate destas experiências, as entidades participantes constatam a necessidade de reunir forças, bem como de adotar como estratégia a realização de campanhas e mobilizações na cidade, visando evidenciar a problemática habitacional e urbana de Fortaleza.

    Encontros municipais, posteriores às capacitações descentralizadas, passam a ser realizados, integrando as várias entidades, abrindo espaço para articulações e parcerias com as universidades, com instituições classistas locais e outros fóruns representativos onde questões locais de outras natureza são debatidas.

    A aprovação do Estatuto da Cidade em agosto de 2001 também merece destaque neste processo, dado que as entidades assumem a responsabilidade em divulgá-lo, sensibilizando a população quanto a sua importância, a partir da capacitação de lideranças comunitárias utilizando situações concretas para sua discussão. Como conseqüência tem-se a criação de uma rede de entidades denominada Núcleo de Habitação e Meio Ambiente – NUHAB, agregando ONGs, movimento popular e projetos de extensão das universidades.

    Entretanto, será a iniciativa da prefeitura municipal de rever o Plano Diretor segundo o Estatuto da Cidade que conseguirá aglutinar as várias instituições, especialmente por conta do caráter autoritário e anti-democrático como esta revisão passa a transcorrer.

    Enquanto a Prefeitura juntamente aos técnicos por ela contratados junto a uma fundação da Universidade realizava reuniões de nivelamento, o NUHAB realizava uma série de capacitações sobre o estatuto e sua aplicabilidade à problemática de Fortaleza, contribuindo na fundamentação para um processo de planejamento participativo. Da mesma forma, são realizadas mobilizações e nos meios de comunicação como marchas, distribuição de material impresso, debates em rádio-TV e publicação de artigos tratando do Plano Diretor.

    Em dezembro de 2002, após uma ação descentralizada, em que se apresentou o problema nos bairros, realizou-se um seminário de integração, quando pela primeira vez aconteceu um debate sobre o Plano Diretor entre os consultores e a sociedade civil, ficando estabelecido a criação de um calendário de reuniões em que seriam debatidos os temas a serem diagnosticados. Após 1 ano esse calendário ainda não foi apresentado.

    O processo de capacitação permanece, remetendo-se à regularização fundiária, identificando-se área piloto onde os instrumentos regulamentados pelo Estatuto pudessem ser aplicados. Além disso, o tema revisão do Plano Diretor e o Estatuto da Cidade passa a ser adotado como eixo central da escola de planejamento urbano e pesquisa popular do Cearah Periferia, assim como pelo Congresso da Federação de Bairros e Favelas de Fortaleza, pelas oficinas de capacitação das várias entidades que compõem o NUHAB no seu dia-a-dia. Merece aqui destaque a capacitação em massa, como atividade preparatória para o IV Encontro da Cidade de Fortaleza, quando foram mobilizadas centenas de pessoas, representando um marco no reconhecimento do NUHAB em seu potencial como mobilizador, que passa a contar com o apoio do DED e da CESE em suas ações.

    Aos poucos vão sendo furados os cercos à participação popular no processo de planejamento, passando a tecnocracia e o poder local a considerar a capacidade de intervenção das comunidades e das instituições não governamentais. Todavia, observa-se que a postura de evitar o debate permanece, prosseguindo-se com a revisão do Plano Diretor totalmente avessa à participação popular, tentando-se aprová-lo apenas através das reuniões de Conselhos de Meio Ambiente Municipal e de um Conselho Permanente de Plano Diretor que encontrava-se em hibernação desde a aprovação do PDDU em 1992.

    Debates convocados pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura constituíram-se também em espaços de discussão, onde se evidenciou a precariedade do material produzido pela prefeitura e seus consultores, deixando claro o total desconhecimento da realidade local pelos técnicos responsáveis pela revisão do Plano. De uma forma geral, para a realização dos trabalhos de composição do diagnóstico foram utilizados apenas fontes secundárias e dados quantitativos, muitas vezes ultrapassadas no tempo. Ou seja, Aqueles responsáveis pelo processo de planejamento não sabem que cidade nós temos na realidade.

    Da mesma forma, chegam a propor um Plano de Estruturação Urbana, resumindo-se à proposição de um macro-zoneamento e micro-zoneamento, retalhando-se a cidade, sem no entanto considerar em momento alguma cidade que todos querem, a cidade que todos gostariam de ter. Fica evidente que a cidade em planejamento é uma cidade partida, prevalecendo a cidade provida de infra-estrutura sobre a outra, sem que se aspire uma política urbana pautada na inversão de prioridades.

    Sem promover um esclarecimento dos procedimentos metodológicos pelos consultores junto à sociedade civil, sem consultar a todos sobre os problemas vividos nas comunidades e bairros em geral, e principalmente sem consultar a população em geral sobre a cidade que se quer ter, observa-se na atual elaboração do Plano Diretor, uma ameaça fazendo com que a cidade permaneça por mais alguns anos sem um processo de planejamento impedindo que se busque a construção de uma cidade socialmente justa e ambientalmente equilibrada.

    Na ausência de instrumentos participativos, nosso plano não consegue captar a cidade que temos na realidade, muito menos a cidade que queremos. O que dirá da cidade que podemos ter. Após muita pressão da sociedade, algumas audiências publicas foram convocadas. Em seu conteúdo, verifica-se apenas a confirmação de uma cidade partida. Em sua metodologia, observa-se a falta de importância dada à participação popular no processo de planejamento urbano, predominando a visão tecnocrática e autoritária de instituições públicas onde se abrigam interesses privados.

    Apesar das ações do NUHAB, inclusive entrando com representações junto ao Ministério Público e promovendo debates e audiências em torno do tema na Câmara Municipal e na Assembléia Legislativa, a equipe de consultores da Prefeitura continua seus trabalhos, apresentando nas reuniões dos conselhos de meio ambiente e plano diretor os resultados, quase sempre incompletos, mas que aos poucos vem se legitimando, suprimindo partes incompletas.

    A realidade que se tem é que em breve será encaminhada à Câmara os projetos de lei do Plano Diretor, da Lei de Uso e Ocupação do Solo, do Novo Código Ambiental e do Código de Obras e de Posturas, fazendo equipe técnica da consultoria e da prefeitura vistas grossas à necessidade de participação no processo de elaboração do Plano Diretor de Fortaleza.

    As informações até aqui obtidas sobre os documentos que serão encaminhados como projetos de lei, mostram que os mesmos apenas reproduzem de forma teórica os conceitos apresentados para cada instrumento do Estatuto da Cidade, sem no entanto fazer qualquer referência à sua aplicabilidade no tempo e no espaço.

    Antevendo o debate que virá a acontecer no futuro por conta da aprovação deste Plano Diretor na Câmara, o NUHAB parte para uma nova ação da capacitação. Desta vez tratando de questões específicas de cada bairro ou micro-região, que inclusive já tenham sido diagnosticadas. Parte-se então para capacitar na prática os representantes do movimento popular e sociedade civil organizada como um todo. Utilizando-se dramatizações, mapas e maquetes, o NUHAB parte para mostrar que cidade é possível ter, considerando a realidade de cidade que se tem, e a cidade que se quer ter.

     

  3. Algumas considerações finais...

A experiência vivenciada em Fortaleza nos mostra a importância do desenvolvimento de instrumentos de participação na elaboração e discussão do Plano Diretor. Reconhecidamente como espaço produzido de forma desigual, observa-se que essa condição possa ser diretamente proporcional às tentativas de impedir a prática de procedimentos democráticos nos processos de planejamento urbano.

Uma constatação decorrente deste processo de embate entre a sociedade civil e a tecnocracia, seja ela pública ou privada, diz respeito ao despreparo dos técnicos da prefeitura e dos consultores quanto à utilização de metodologias participativas. Além disso, observa-se a necessidade de que os conceitos e novos procedimentos trazidos pelo estatuto devam ser levados às equipes da prefeitura e consultores, que tem demonstrado a falta de domínio quanto à aplicabilidades dos mesmos.

A interdisciplinaridade também não se faz presente na maior parte do processo de elaboração do Plano Diretor, havendo um predomínio da parte dos profissionais de arquitetura e urbanismo como responsáveis seja pela realização do diagnóstico, seja pela elaboração de propostas, havendo aqui um grande equívoco, ao confundir planejamento urbano e urbanismo.

A falta de compreensão da importância do processo participativo tem levado a um outro problema relacionado ao controle sobre a informação produzida. Da não abertura, decorre um diagnóstico irreal, assim como a não identificação dos anseios da população, que passam a negar os processos de planejamento urbano, por não se enxergarem naquilo que acaba sendo proposto.

A utilização de metodologias de planejamento participativo como estratégia de fortalecimento do movimento popular em atividades outras que não o planejamento urbano tem contribuído também para difundir a linguagem da participação, contribuindo na resistência do movimento popular diante de práticas autoritárias, facilmente reconhecíveis.

Uma medida que poderia contribuir com a elaboração de planos diretores verdadeiramente participativos, seria a subdivisão do processo de aprovação junto à câmara evitando-se que ao final cheguemos a um plano que não represente a realidade local, dando-se margem a que o processo de discussão do Plano se dê na Câmara e em etapas.

Outro ponto que se tem constatado é a fragilidade dos movimentos sociais diante das forças unificadas entre as instituições públicas e os interesses privados. Neste sentido, observa-se uma forte dependência dos movimentos em relação às ONGs e Universidades no sentido de esclarecê-los e apóia-los desde a busca pela abertura dos debates até a discussão em torno das propostas. Além disso, deve-se ressaltar a relação de complementaridade entre as ONGs e o movimento popular organizado.

Há de se ressaltar que na luta para se desfazer as verdades da tecnocracia no planejamento urbano e combater o autoritarismo hermético em que os mesmos se apóiam, em muito tem contribuído uma nova visão do direito. Vale aqui mencionar a contribuição trazida com os projetos de extensão e os escritórios em defesa dos direitos humanos no sentido de facilitar a linguagem, garantindo assim maior espaço à participação popular nos processos de planejamento.

 

Topo

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

 

Reabilitação urbana e planos diretores: algumas considerações iniciais

Leonardo Barci Castriota

No âmbito de uma conferência que se propõe a discutir os desafios que hoje se colocam para o planejamento urbano no Brasil à luz do novo contexto trazido pela aprovação do Estatuto da Cidade, parece-nos de especial relevância a discussão das articulações entre as chamadas políticas de patrimônio e as políticas urbanas em geral. O fato é que, em nosso país, essas esferas têm se mantido afastadas, embora os discursos tanto dos órgãos de preservação quanto dos de planejamento urbano tenham acolhido a premissa da integração. Grande parte dessas dificuldades derivam, a nosso ver, de um duplo impasse: a não absorção real no país do conceito contemporâneo e ampliado do patrimônio e a decorrente indefinição acerca do tipo de intervenção a ser exercida sobre os bens culturais. É neste sentido que este artigo propõe-se a discutir, ainda que de forma preliminar, essas duas questões, relacionando as dimensões teórica e prática envolvidas nas políticas de patrimônio e a perspectiva de sua integração com as políticas urbanas.

Assim, tentaremos, por um lado, focalizar a extraordinária ampliação que esse conceito sofre especialmente nas últimas décadas do século XX; por outro lado, vamos discutir as questões colocadas por essa ampliação para a gestão do patrimônio, que se relacionam com o próprio modelo jurídico-administrativo a se utilizar. Para isso, numa tentativa de estabelecer certas distinções que nos parecem fundamentais, propomos traçar-se três modelos, que corresponderiam a três posturas diferenciadas em relação ao patrimônio, que designamos por três termos estabelecidos na área – preservação, conservação e reabilitação. Antes de avançarmos, é importante ressaltar ainda que se estamos tratando de modelos teóricos, esses vão ser deduzidos historicamente, correspondendo cada um deles a um determinado momento da trajetória das políticas de patrimônio. Assim, ao fazer esta delimitação, parece-nos possível perceber que cada um desses modelos:

A preservação e o conceito tradicional de patrimônio

Segundo a "Carta de Burra", redigida pelo ICOMOS em 1980, pode-se definir a preservação como a "manutenção no estado da substância de um bem e a desaceleração do processo pelo qual ele se degrada." Como se sabe, a primeira onda de políticas para o patrimônio protegia basicamente edificações, estruturas e outros artefatos individuais, e tinha um caráter essencialmente imobilista, tendo como foco, de fato, a limitação da mudança. Como bem observam Tiesdell, Oc e Heath, essas políticas de preservação iniciais terminavam tendo efeitos bastante limitados, na medida que suas principais preocupações restringiam-se à manutenção do bem, focando-se, quando muito, a questão do seu de entorno, tentando se minimizar os danos eventualmente causados por empreendimentos impróprios próximos às edificações protegidas. Um bom exemplo desta preocupação, é o caso bastante conhecido da construção do Hotel Hilton, em Budapeste, próximo ao castelo real, monumento da mais alta importância. Aqui fica clara a concepção restrita e limitada do patrimônio implícita no modelo da preservação. No que se refere especificamente ao patrimônio arquitetônico, este é percebido como uma espécie de "coleção de objetos", identificados e catalogados por peritos, como representantes significativos da arquitetura do passado e, como tal, dignos de preservação, passando os critérios adotados aqui pelo caráter de excepcionalidade da edificação, à qual se atribuía valor histórico e/ou estético. Já quanto ao patrimônio cultural, a sua concepção tradicional relaciona-o a produtos da cultura erudita, derivados, via de regra, de grupos e segmentos sociais dominantes. Assim, no que se refere ao tipo de objeto, parece-nos possível afirmar que as políticas de preservação desenvolvidas até os anos 60 protegiam normalmente edificações, estruturas e outros artefatos individuais, invocando-se como razões para sua preservação a excepcionalidade do bem.

No que se refere ao marco legal pressuposto para a preservação, o campo também vai estar bastante bem definido até os anos 60. De fato, como mostram vários autores, com a consolidação do conceito de monumento histórico ao longo do século XIX vai-se criando uma legislação de proteção, chegando a maior parte dos países europeus ao final daquele século dotados de instrumentos para a preservação de seus monumentos antigos. No caso do Brasil, neste primeiro modelo pertencer ao patrimônio vai ter, ao lado de um significado cultural, um significado jurídico quase único: preservar se identificava, quase que automaticamente, com "tombar". Instrumento introduzido no Brasil na década de 30, o tombamento, pensado inicialmente para proteger bens excepcionais, permanece até muito recentemente quase como o único tipo de proteção efetivamente utilizado no país.

No que se refere ao tipo de ação, neste primeiro momento pode-se perceber o claro predomínio do Estado, que é o protagonista inconteste e quase exclusivo das políticas de patrimônio. Aqui é importante lembrar que na idéia da preservação ainda se lida com um campo estreito e, ainda que possam aparecer divergências quanto aos critérios, essencialmente delimitável: afinal, trata de se identificar um elenco limitado de excepcionalidades. Aqui não parece haver dúvida também quanto ao papel - decisivo – reservado aos peritos: além da incumbência da própria delimitação do campo, esses tratariam de fiscalizar, restaurar e conservar os bens identificados. Pela própria natureza dos bens a serem protegidos e pela concepção da ação que se deveria exercer sobre eles, podemos deduzir, então, o tipo de profissionais envolvidos nessas políticas: majoritariamente arquitetos e historiadores.

Este tem sido o modelo dominante no caso brasileiro, desde o estabelecimento institucional das políticas de patrimônio, nos anos 30, até os dias de hoje, apesar do discurso dos órgãos e agências estatais absorverem retoricamente as novidades trazidas pela experiência internacional. Este processo pode ser bem exemplificado, a nosso ver, pela trajetória das políticas de preservação em Ouro Preto, ao longo do século XX, que acompanhamos detalhadamente em trabalho anterior, e que mostram bem como mesmo quando se protegia um conjunto urbano, o conceito dominante continua sendo o da "obra de arte", o que leva a uma abordagem idealizante.

Os conflitos decorrentes da aplicação deste modelo ficam mais evidentes a partir dos anos 50, quando, com o início da exploração do alumínio, Ouro Preto ganha novo impulso econômico, sofrendo um grande crescimento populacional. Para abrigar a população atraída por ela, a indústria (ALCAN) implanta um novo bairro nos limites da cidade, que é articulado como um distrito industrial, com uma estrutura urbana funcionalista, em tudo diferente da tradicional. No entanto, como nem toda a demanda habitacional pôde ser absorvida por esse bairro, o núcleo histórico passa a sofrer uma pressão inusitada. Assim, o centro, que se mantinha praticamente inalterado desde os fins do século XVIII, sofre um processo de expansão, levando ao aproveitamento de todas as suas áreas periféricas, onde são construídas edificações, na sua maioria de baixo padrão. Para se ter uma idéia do número de novas construções basta um dado: ao se tombar o conjunto, em 1938, este possuía aproximadamente 1.000 edificações; somente entre 1938 e 1985, são aprovadas 3.000 construções novas. Além disso, é digno de nota o processo de adensamento do núcleo original, onde as edificações vão sofrer remanejamentos internos, numa tentativa de se abrigar um número maior de pessoas. Nesse processo, também são ocupados por novas construções os lotes vagos e mesmo os grandes quintais, alterando-se significativamente a relação de cheios e vazios no conjunto. Como se poderia esperar, as pressões modernizadoras fazem com que cresça o antagonismo entre a população local, sistematicamente excluída da formulação das políticas de preservação, e o SPHAN, que tenta manter o conjunto intacto, através de uma política essencialmente negativa e de controle na aprovação de projetos.

No que concerne à trajetória do SPHAN, é interessante perceber como, apesar da absorção pelo seu discurso de novos conceitos, especialmente a partir da influência da Carta de Veneza, que introduz as idéias de sítio urbano e da utilização social dos monumentos, o seu trabalho continua na mesma linha, considerando a cidade como objeto estético a se preservar, sem considerar de forma conveniente a questão de seu desenvolvimento sócio-econômico. Assim, ao considerarem, como vimos, a cidade como obra de arte, as políticas de patrimônio aí implementadas nunca puderam incorporar de fato os novos agentes que se colocavam na cena urbana, não conseguindo tampouco elaborar estratégias que lograssem compatibilizar preservação e desenvolvimento.

A idéia da conservação

Desde o final da 2a. Guerra, porém, o próprio conceito de patrimônio passa por importantes mudanças, vindo a sofrer uma ampliação que muda a natureza do seu campo. No que se refere especificamente ao patrimônio arquitetônico, a sua concepção inicial, muito presa ainda à idéia tradicional de monumento histórico único, vai sendo ampliada: tanto o conceito de arquitetura, quanto o próprio campo de estilos e espécies de edifícios considerados dignos de preservação expandem-se paulatinamente. Assim, ao longo do século XX, vão penetrando no campo do patrimônio conjuntos arquitetônicos inteiros, a arquitetura rural, a arquitetura vernacular, bem como passam a se considerar também etapas anteriormente desprezadas (o ecletismo, o Art Nouveau), e mesmo a produção contemporânea. Aqui, aos critérios estilísticos e históricos vão se juntando outros, como a preocupação com o entorno, a ambiência e o significado. Françoise Choay, num importante trabalho de delimitação teórica da questão, chega a identificar uma tripla expansão desse conceito: cronológica, tipológica e geográfica.

Também a noção de "patrimônio cultural" vai sofrer uma ampliação, principalmente graças ao contributo decisivo da Antropologia, que, com sua perspectiva relativizadora, nele integra os aportes de grupos e segmentos sociais que se encontravam à margem da história e da cultura dominante. Nesse processo, a noção de cultura deixa de se relacionar exclusivamente à chamada cultura erudita, passando a englobar também as manifestações populares e a moderna cultura de massa. Ao mesmo tempo, passa-se a considerar com atenção os elementos materiais, técnicos, da cultura, rejeitando-se aquela contraposição idealista, longamente cultivada, entre Zivilisation e Kultur. Ao lado dos bens móveis e imóveis, e daqueles de criação individual, componentes do acervo artístico, consideram-se também agora como parte do patrimônio cultural de um povo, uma outra espécie de bens, os utensílios, procedentes sobretudo do "fazer popular", "inseridos na dinâmica viva do cotidiano". Além disso, superando a visão reificada da cultura como um "conjunto de coisas", tende-se cada vez mais a trabalhá-lha como um processo, focalizando-se a questão - imaterial - da formação do significado.

É nesse sentido que, nos parece fundamental o conceito contemporâneo de patrimônio ambiental urbano, matriz a partir da qual podemos pensar hoje a preservação do patrimônio, sem cair nas limitações da visão tradicional. Pensar na cidade como um "patrimônio ambiental" é pensar, antes de mais nada, no sentido histórico e cultural que tem a paisagem urbana em seu conjunto, valorizando não apenas monumentos "excepcionais", mas o próprio processo vital que informa a cidade. Neste campo, o tipo de objeto a ser protegido muda, passando do monumento isolado a grupos de edificações históricas, à paisagem urbana e aos espaços públicos. Asssim, quando se pensa em termos de patrimônio ambiental urbano, não se pensa apenas na edificação, no monumento isolado, testemunho de um momento singular do passado, mas torna-se necessário, antes de mais nada, perceber as relações que os bens naturais e culturais apresentam entre si, e como o meio ambiente urbano é fruto dessas relações. Aqui a ênfase muda: não interessa mais, pura e simplesmente, o valor arquitetônico, histórico ou estético de uma dada edificação ou conjunto, mas verificar como os "artefatos", os objetos se relacionam na cidade para permitir um bom desempenho do gregarismo próprio ao ambiente urbano. Em outras palavras: é importante perceber como eles se articulam em termos de qualidade ambiental. Abordar o patrimônio ambiental urbano vai ser assim, como se pode perceber, muito mais que simplesmente tombar determinadas edificações ou conjuntos: é antes, conservar o equilíbrio da paisagem, pensando sempre como inter-relacionados a infra-estrutura, o lote, edificação, a linguagem urbana, os usos, o perfil histórico e a própria paisagem natural. Não se trata mais, portanto, de uma questão estética ou artística controversa, mas antes da qualidade de vida e das possibilidades de desenvolvimento do homem. Com isso, desloca-se o eixo da discussão, recolocando-se a questão do patrimônio frente a balizamentos capazes de enquadrá-la em sua extensão contemporânea.

Nos anos 60, começa-se, assim, a se formular uma outra visão de intervenção sobre o patrimônio, passando-se da idéia da preservação para a da conservação, que vem a constituir o nosso segundo modelo. Segundo a "Carta de Burra" de 1980,

o termo conservação designará os cuidados a serem dispensados a um bem para preservar-lhe as características que apresentem uma significação cultural. De acordo com as circunstâncias, a conservação implicará ou não a preservação ou a restauração, além da manutenção; ela poderá, igualmente, compreender obras mínimas de reconstrução ou adaptação que atendam às necessidades e exigências práticas."

Como se pode perceber, a partir da concepção ampliada de seu próprio objeto, a conservação vai apontar para uma dimensão mais dinâmica, passando da idéia da manutenção de um bem cultural no seu estado original para a da conservação daquelas de suas características "que apresentem uma significação cultural". Desta forma, enquanto a preservação pressupõe a limitação da mudança, a conservação refere-se à inevitabilidade da mudança e à sua gestão. Não é de se estranhar, portanto, que essa idéia emerja quando se consolida a idéia do patrimônio urbano, objeto não estático por excelência. Nesta nova perspectiva, passa a ser central a integração da conservação com políticas mais amplas de desenvolvimento, sendo uma contribuição teórica decisiva a introdução, pela Declaração de Amsterdã de 1975, do conceito de "conservação integrada", onde se explicita a necessidade da conservação ser considerada não como uma questão marginal, mas como um dos objetivos centrais do planejamento urbano e regional.

Já nos anos 60, começam a emergir na Europa e Estados Unidos as chamadas políticas de conservação de áreas, com suas diferentes configurações regionais: ‘arrondissements historiques’, ‘secteurs sauvegardés’, ‘historic districts’, ‘conservation areas’. Aqui podemos ver também o surgimento de um novo marco legal das políticas do patrimônio: a idéia das "áreas de conservação", que são, para adotarmos a definição clássica do Civil Amenities Act britânico, de 1967, "áreas de especial interesse arquitetônico ou histórico, cujo caráter deseja-se preservar ou promover". A legislação inglesa não vai ser, no entanto, a precursora na Europa, sendo precedida pelo "Ato dos monumentos" holandês e, principalmente, pela Lei Malraux da França, ambos de 1961. Esta vai ser, de fato, a primeira na Europa a acrescentar à idéia da preservação monumental a questão da conservação dos centros históricos, tentando associar de forma íntima planejadores urbanos e os chamados arquitetos de monumentos. Nos Estados Unidos, por sua vez, apesar do precedente representado por Williamsburg, transformada numa espécie de museu a céu aberto a partir da doação de milhões de dólares por John Rockfeller, vai ser o National Historic Preservation Act de 1966 que introduz no país a noção dos "distritos de preservação histórica", bastante difundidos hoje em dia.

É interessante perceber ainda, no que se refere aos atores envolvidos, como no modelo da conservação, o Estado continua sendo o protagonista, apesar de já se perceber a necessidade de participação das comunidades e da iniciativa privada. A ação estatal, no entanto, vai ser diferente, deixando de ser apenas, como no caso da preservação, uma reação especial a casos excepcionais, e passando a ser uma ação contínua, parte integral de um processo de planejamento urbano. Assim, nada mais natural do que entre os profissionais envolvidos os planejadores urbanos somem-se aos arquitetos e historiadores, que continuam predominando nas políticas de patrimônio. Um exemplo típico deste modelo de intervenção vai ser o caso de Bologna, onde, com o auxílio da metodologia do restauro histórico-tipológico, se protege e se recupera o centro histórico como um todo – e não apenas monumentos excepcionais isolados – destacando-se ali a função residencial. Com a crítica aos estragos que a perspectiva do urbanismo moderno vinha causando às cidades, valoriza-se neste momento também a qualidade ambiental dos núcleos históricos e a conservação de sua morfologia urbana e do patrimônio cotidiano.

No entanto, se não é mais simplesmente reativa a casos excepcionais, a ação do Estado, pelo menos num primeiro momento, continua a ser basicamente negativa, aparecendo como prioridade muito mais controlar e normatizar a forma de atuação das diversas forças que atuam nos centros urbanos. Historicamente isto pode ser explicado por razões contraditórias nos diferentes períodos: nos anos 60, quando se inicia esta tendência, vivia-se um período de crescimento econômico, o que levou a se considerar razoável que os planejadores se ocupassem em controlar e canalizar as variadas demandas concorrentes por espaço nas cidades. Já na década de 70, com a estagnação econômica trazida pela crise de energia, o ritmo das demolições e esquemas de redesenvolvimento diminui, o que também, por motivos opostos, inibe as tentavias de se produzir crescimento econômico para se revitalizar as áreas. Como observam Tiesdell, Oc e Heath, a nova legislação introduzida neste período ainda dava pouca atenção ao problema de se encorajar a utilização do estoque crescente do patrimônio conservado, especialmente na medida em que a demanda geral por espaço na cidade decrescia: usando o poder negativo de controle, os planejadores achavam mais fácil, de modo geral, prevenir usos não apropriados para as edificações do que atrair usos mais apropriados para as mesmas.

No caso brasileiro, pode-se afirmar que, de um modo geral, nem mesmo esse estágio representado pela idéia da conservação urbana, onde já se articulam as políticas de patrimônio e de planejamento urbano, vai ser atingido, apesar dos discursos dos órgãos oficiais incorporarem as novidades da cena internacional. Isso fica claro quando analisamos mais uma vez o caso de Ouro Preto, onde, no final dos anos 60, com a cidade se espalhando sem controle para todos os lados e com a crescente descaracterização do conjunto original, colocava-se cada vez mais a urgência de um planejamento urbano. São feitas duas tentativas neste sentido: em 1968, o arquiteto português Viana de Lima, consultor da UNESCO, elabora um primeiro plano de desenvolvimento para a cidade, que consistia basicamente num zoneamento da mesma, com a definição de áreas de preservação e de expansão. Alguns anos mais tarde, em 1974 e 75, a Fundação João Pinheiro, órgão de planejamento do estado, através de uma equipe multidisciplinar sob a coordenação do urbanista Rodrigo Andrade, e que contava com a participação de arquitetos, economistas, sociólogos, historiadores e geólogos, além da consultoria do próprio Viana de Lima e do paisagista Roberto Burle Marx, elabora um novo plano para Ouro Preto. Tratava-se, desta vez, de um amplo trabalho, que incluía projetos que contemplavam tanto a infra-estrutura urbana, paisagismo e restauração de monumentos, quanto aspectos sociais, econômicos, institucionais e administrativos. Além disso, formulava-se também um projeto de expansão urbana para a cidade que recomendava a criação de novos núcleos, de forma a assegurar um processo compatível de desenvolvimento, sem afetar a integridade histórica do conjunto.

No entanto, uma série de dificuldades de ordem institucional, faz com que esses planos nunca sejam implementados. O caso de Ouro Preto exemplifica bem, a nosso ver, a desarticulação entre os diversos órgãos responsáveis pela preservação e administração das cidades brasileiras: ali vamos ter a ação de três níveis de governo - federal, estadual e municipal, que nem sempre colaboram entre si. Ao SPHAN, o órgão federal responsável pelo tombamento, cabia a responsabilidade pela manutenção e conservação de Ouro Preto desde 1938, incluindo aí a inspeção e coordenação de projetos e manutenção de museus. O Estado, neste caso representado pela Fundação João Pinheiro, entrava como responsável pela coordenação do plano urbano. Já a Prefeitura, como a principal responsável pela administração da cidade e pelo controle do uso do solo urbano, tendia muitas vezes, como representante dos interesses locais, a se contrapor ao SPHAN e à sua política de restrições ao crescimento, tornando-se muito comuns conflitos entre os níveis de poder. Na opinião de um arquiteto do SPHAN, "o governo local costuma se omitir da responsabilidade pela conservação do patrimônio local, fazendo o trabalho do SPHAN ainda mais difícil." Assim, no caso desses planos urbanos, que poderiam ser vistos como uma tentativa de ultrapassar a perspectiva inicial da preservação, eles nunca vão ser aprovados pelo município, não tendo nenhum efeito sobre as políticas urbanas.

A reabilitação do patrimônio urbano

Se num primeiro momento, como vimos, a questão da conservação ainda não se liga imediatamente à idéia de desenvolvimento das áreas conservadas, esta questão vai se mostrar inarredável na próxima etapa, quando se introduz a idéia da reabilitação dos centros históricos. O fato é que, desde o Congresso de Amsterdã de 1975, coroamento do Ano Europeu do Patrimônio Arquitetônico, reconhece-se explicita e programaticamente a importância da manutenção e incremento da função econômica das áreas protegidas. Assim, a Carta de Amsterdã já formula:

A reabilitação de bairros antigos deve ser concebida e realizada, tanto quanto possível, sem modificações importantes da composição social dos habitantes e de uma maneira tal que todas as camadas da sociedade se beneficiem de uma operação financiada por fundos públicos.

No entanto, é interessante perceber que quando trata da questão econômica, a Carta de Amsterdã vai fazê-lo quase que exclusivamente sob o ponto de vista do financiamento da operação, que vai ser entendida a partir de um nível elevado de interferência - e investimento – estatal, que caracterizava as políticas públicas do período. A nosso ver, não é de se estranhar que tenha sido uma carta americana, as "Normas de Quito", resultantes da "Reunião sobre Conservação e Utilização de Monumentos e Lugares de Interesse Histórico e Artístico", organizada pela OEA em 1967, a primeira a dar grande destaque à questão econômica, já que vai ser também nas Américas, e particularmente na América Latina, que se coloca com muita gravidade o problema da escassez de recursos para esse tipo de intervenção. Assim, as "Normas de Quito" vão constatar que a eficácia prática de medidas de emergência para a proteção do patrimônio cultural dependerá, "em último caso, de sua adequada formulação dentro de um plano sistemático de revalorização dos bens patrimoniais em função do desenvolvimento econômico-social". Além disso, vai ser aquela carta também a primeira a dedicar todo um capítulo à "valorização econômica dos monumentos", que é tratada extensivamente, mesmo que ainda sob um ponto de vista limitado, o do denominado turismo monumental.

É interessante percebermos como a emergência da questão do financiamento e da sustentabilidade das áreas conservadas dá-se apenas quando se torna claro que a preservação e a conservação não poderiam se dar apenas às custas dos financiamentos públicos, fazendo-se tal demanda ainda mais urgente na medida em que o conceito ampliado de patrimônio trazia para o âmbito da conservação áreas inteiras, que passavam a ser valorizadas como totalidade urbana e não a partir do mérito arquitetônico ou estético das edificações e estruturas individuais. Neste momento a questão do uso dessas áreas torna-se central para as políticas de patrimônio: o fato é que nem todas essas edificações protegidas podiam se transformar em museus ou centros culturais, e nem todas as áreas conservadas, em destinos turísticos privilegiados. Aqui cabe lembrar uma observação arguta de Burtenshaw, que aponta que o fracasso em encontrar novos usos para edificações preservadas – que se tornam cada vez mais numerosas – "condena a cidade a uma existência de museu a céu aberto". Assim, ao lado das já tradicionais preocupações com as qualidades visuais, arquitetônicas ou históricas, introduz-se a preocupação com as características funcionais das áreas e o seu uso econômico.

Em sua fase inicial, nos anos 60 e 70, discutia-se essa questão através da contraposição – que hoje nos aparece como artificial - entre plano urbanístico e plano sócio-econômico, entre os "modelos" de Bologna, que empreendera uma bem sucedida restauração histórico-tipológica de seu centro histórico, e de Salerno, que, ao invés, produzira um amplo diagnóstico sócio-econômico que, visando primordialmente enfrentar a questão da marginalidade econômica, limitava-se a propor a lenta implantação de melhorias urbanas, para que os habitantes pudessem se adaptar a elas. Muito se avançou desde então, e o que se tem visto no âmbito das políticas de patrimônio, a partir dos anos 80, são esforços sistemáticos para se gerar investimentos e desenvolvimento econômico que serviriam para, em última instância, financiar a conservação das áreas. Neste momento introduz-se aquele que definimos como o terceiro modelo de intervenção sobre o patrimônio – o da reabilitação urbana: partindo da compreensão da realidade sobre a qual se quer atuar, as políticas de patrimônio não se limitam mais a apenas formular estratégias de controle para as áreas a serem conservadas, mas passam a traçar estratégias amplas para o seu desenvolvimento, que partem exatamente de seu caráter de áreas conservadas. Se este modelo também encontra suas raízes na experiência de Bologna, onde se realiza uma operação de recuperação do centro histórico para uso residencial com forte subvenção estatal, seu paradigma mais acabado vai ser fornecido, no entanto, pelo "Projeto Estratégico de Reabilitação Integrada de Barcelona". Iniciado em 1980, este procura tratar os diferentes problemas urbanos da capital da Catalunha de forma articulada e simultânea, estruturando-se em torno de um plano integral e multicefálico, que reúne ao mesmo tempo projetos urbanístico, culturais, sócio-econômicos e de desenvolvimento social, além de incorporar de forma decisiva o princípio da cooperação público-privada em torno de tarefas concretas e a efetiva participação da comunidade.

Aqui se encontra, a nosso ver, a diferença básica entre o segundo e o terceiro modelo, o da conservação e o da reabilitação: enquanto esses se aproximam no que se refere tanto à concepção de patrimônio quanto ao tipo de objeto visado, a mudança fundamental refere-se aos atores envolvidos e às ações pressupostas para cada um deles. No modelo da reabilitação, o Estado vai deixar de desempenhar um papel negativo, de apenas impor restrições à descaracterização, e passa a articular projetos de desenvolvimento para as áreas a serem preservadas / conservadas / revitalizadas. Além disso, ele também deixa de atuar praticamente sozinho e passa a desempenhar o importante papel de articular os outros atores e de traçar em conjunto com eles os cenários de desenvolvimento futuro. Estamos frente aqui a um novo padrão de gestão, caracterizada por David Harvey como "empreendedorismo urbano", onde dá-se o desenvolvimento de políticas que, por meio da participação da iniciativa privada em "parceria" com as administrações locais, empreendem a recuperação de áreas degradadas nas cidades. Com isso, introduz-se também um novo padrão de planejamento das cidades, que passa a estar comprometido com a negociação e o estabelecimento de parcerias entre atores púbicos e privados. Assim, como observa Fernanda Sanchez, "a figura do planejador, que até pouco tempo era ao menos explicitamente a do regulador da ação da iniciativa privada deixa de ter o perfil do vigilante em prol do bem público, desempenhando agora um novo papel: o de promotor de crescimento."

Como conseqüência deste deslocamento, também o marco legal envolvido sofre alterações: não se trata mais, como no modelo anterior, apenas da delimitação de "áreas de conservação", mas sim da tarefa muito mais ampla de articulação de planos de desenvolvimento para essas áreas, o que pressupõe não só uma série de medidas administrativas, mas também a utilização de um complexo instrumental legal que vem responder a essa nova situação. De fato, nas últimas décadas, têm emergido na área do planejamento e da política urbana os chamados "novos instrumentos", tentativas de estabelecimento de novas formas de relacionamento entre as esferas pública e privada, envolvendo, entre outros, repasses de recursos da esfera privada ao poder público ou a redefinição de competências para intervir sobre o urbano. Tais mudanças vêm impactar fortemente a própria natureza das políticas públicas, que passam a ter um novo desenho - não mais hierarquizado - e uma outra lógica - complexa - e, por isso mesmo, não mais explicável pela relação binária Estado e sociedade. Em outras palavras, o deslocamento dos centros de decisão e a poliarquia de atores tornam-se refêrencias centrais para a implementação das políticas públicas urbanas hoje, o que coloca como grande desafio para a democracia o conhecimento sobre as mediações entre o Estado e a sociedade civil, espaço de interseção que se encontra ainda pouco analisado. Neste novo quadro, também o tipo de profissional envolvido na formulação das políticas de patrimônio se amplia, com a introdução de administradores e gestores, que passam a desempenhar importante papel na articulação da pluralidade de atores envolvidos.

No Brasil, a Constituição de 1988 introduz uma formulação avançada no que se refere às políticas urbanas, respondendo em parte ao crescimento dos movimentos sociais daquele período, que lutam pela chamada "reforma urbana". Com isso, introduzem-se na legislação brasileira novos instrumentos que permitem, pelo menos em tese, a formulação de políticas urbanas de moldes participativos, que incluam os diferentes atores e façam valer o direito social da propriedade – edificação compulsória, direito de preempção, solo criado, operações urbanas consorciadas, transferência do direito de construir, usucapião coletivo, estudo de impacto de vizinhança, entre outros. No entanto, cabe destacar que tais mecanismos só passam a poder ser aplicados de forma menos controversa, com a aprovação em 2001 do chamado "Estatuto da Cidade" (Lei N. 10.257), que regulamenta esses instrumentos, além de estabelecer diretrizes gerais da pollítica urbana nacional. Há hoje em nosso país um grande interesse na implantação de políticas inovadoras, que consigam superar as deficiências crônicas de nossa urbanização, marcada por um alto grau de exclusão e segregação social. Assim, multiplicam-se experiências de molde participativo – orçamento participativo, conselhos consultivos, deliberativos e gestores, além de incipientes tentativas de se estabelecer parcerias entre o poder público e a iniciativa privada. Também no campo do patrimônio, começa-se a se introduzir essa perspectiva com planos de reabilitação de áreas, que, de forma diferenciada, utilizam-se da parceria entre diferentes atores. Aqui poderíamos citar o "Corredor Cultural" no Rio de Janeiro, o "Viva Centro" em São Paulo, o "Reviver" no Maranhão, o Projeto Bairro do Recife, além do inconcluso "Projeto de Reabilitação Integrada do Bairro Lagoinha", em Belo Horizonte, que trabalhava explicitamente com essa perspectiva.

Quando se fala hoje do financiamente e gestão de tais projetos, uma matriz recorrente tem sido a da "sustentabilidade": nascida no âmbito do discurso ecológico, ainda nos anos 80, esta idéia vem sendo crescentemente aplicada ao urbano, ao ponto de se falar hoje em "desenvolvimento urbano sustentável", que é entendido convenientemente como o processo de transformação capaz de criar as condições necessárias para a satisfação das necessidades da geração atual, sem pôr em risco as opções das gerações futuras. No entanto, como bem aponta Henri Acselrad, o discurso da "sustentabilidade urbana" ainda parece se organizar analiticamente em dois campos bastante restritos:

de um lado, aquele que privilegia uma representação técnica das cidades pela articulação da noçãode sustentabilidade urbana aos "modos de gestão dos fluxos de energia e materiais associados ao crescimento urbano"; de outro, aquele que define a insustentabilidade das cidades pela queda da produtividade dos investimentos urbanos, ou seja, pela "incapacidade destes últimos acompanharem o ritmo de crescimento das demandas sociais", o que coloca em jogo, consequentemente, o espaço urbano como território político.

Tais abordagens – que privilegiam os aspectos funcionais e econômicos – parecem-nos insuficientes para se abordar a questão mais complexa da conservação e reabilitação dos centros históricos. Neste ponto, parece-nos central interrogarmo-nos se os chamados projetos de reabilitação em curso (Pelourinho, Bairro do Recife, entre outros), estariam de fato reabilitando o patrimônio das cidades, ou apenas se inserindo naquela tendência do city marketing – política urbana orientada ao atendimento das necessidades do consumidor, seja este empresário, turista ou o próprio cidadão, verdadeiras fábricas de imagem para promover seus "produtos"?

 

Bibliografia:

CERVELLATTI, Pier Luigi; SCANNAVINI, Roberto. Bolonia. Politica y Metodologia de la Restauracion de Centros Historicos. Barcelona, Gustavo Gilli, 1976.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio; tradução Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade: Editora UNESP, 2001. (Edição francesa: L´allégorie du Patrimoine. Paris, Seuil, 1992).

GUTIERREZ, Rámon. Arquitetura Latino-Americana. Textos para reflexão e polêmica. São Paulo, Studio Nobel, 1989.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO. Cartas Patrimoniais. Brasília: IPHAN, 1995.

LA REGINA, Adriano. Preservação e revitalização do Patrimônio Cultural na Itália. São Paulo, FAUUSP, 1982.

MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades. Alternativas para a crise urbana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

SÁNCHEZ, Fernanda. "Políticas urbanas em renovação. Uma leitura crítica dos modelos emergentes". Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. No. 1, maio de 1999. ANPUR.

SANTOS, Carlos Nelson F. dos. "Preservar não é tombar, renovar não é pôr tudo abaixo". Projeto. No. 86, 1986.

TIESDELL, Steven; OC, Taner; HEATH, Tim. Revitalizing Historic Urban Quarters. Oxford: Architectural Press, 1996.

 

Topo

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

 

Plano Diretor, Transporte e Mobilidade Urbana

Liane Nunes Born

Introdução:

Dentre as atividades urbanas como moradia, trabalho, estudo, lazer, compras, a mobilidade se inclui como uma atividade meio, sem a qual se torna impossível o desempenho das demais. O deslocamento de pessoas e mercadorias, influencia fortemente os aspectos sociais e econômicos do desenvolvimento urbano. Por outro lado, a maior ou menor necessidade de deslocamentos é definida pela localização das atividades na área urbana.

Assim, a mobilidade urbana é ao mesmo tempo causa e conseqüência do desenvolvimento econômico-social, da expansão urbana e da distribuição espacial das atividades.

Outra dimensão nem sempre considerada quando se fala em planejamento urbano e de transportes é a íntima relação entre infra-estrutura e transporte motorizado e a questão ambiental.

A legislação vigente estabelece claramente as competências dos três níveis de governo, no que diz respeito ao sistema de transportes:

Paralelamente, cabe também ao poder público municipal a elaboração de toda a legislação urbanística, que, conforme afirmado anteriormente, tem grande influência no sistema de transporte e vice-versa.

A grande dificuldade de se incorporar o serviço de transportes e de trânsito, ou melhor, o conceito de mobilidade ao planejamento urbano e regional contribuiu, através dos anos, para a produção de cidades cada vez mais excludentes e insustentáveis do ponto de vista ambiental e econômico.

Esta dificuldade se deve talvez ao fato de que a infra-estrutura viária é fator determinante do planejamento físico e territorial, sendo grande o investimento público a ela destinado e a pressão exercida pelo crescimento vertiginoso da frota de veículos privados. Por outro lado, o serviço de transportes, do qual depende a grande maioria da população, ainda não é encarado como serviço público essencial, como determina a Constituição Federal, pois, além de, na sua grande maioria, ter sua operação concedida a terceiros, não implica em investimentos por parte do poder público, já que, injustamente, é totalmente pago pelos usuários que dele dependem, através da tarifa.

Trazer à luz a questão da mobilidade urbana é um dos grandes desafios a serem encarados pelo Planejamento Urbano no Brasil.

Justificativa

Desde a década de 60, o modelo de desenvolvimento econômico baseado no crescimento da indústria automobilística impôs ao país uma cultura rodoviarista, resultando no quase abandono dos demais modos de transporte, principalmente o transporte sobre trilhos. No mesmo período, o processo de urbanização acontecia de forma vertiginosa e desorganizada. Ou seja, as cidades brasileiras se formaram dentro de uma cultura voltada para o automóvel. Entretanto a grande maioria da população depende do transporte coletivo e dos modos não motorizados para seus deslocamentos nas cidades.

Uma análise das ações do Governo Federal, relativas ao transporte urbano ao longo das últimas décadas mostra que nunca se chegou a estabelecer uma política consistente para o setor. Os programas e projetos eram definidos em função da conjuntura, sem visão de continuidade, integração entre os modos e necessidades reais da população, principalmente das periferias.

A Constituição Federal de 88 passou a considerar o transporte público como serviço público essencial e transferiu aos municípios a responsabilidade de gerir os serviços de transporte e trânsito. Na prática, o Governo federal se retirou do setor, ignorando que os problemas existentes não poderiam ser resolvidos somente ao nível local.

O Código de Trânsito Brasileiro, de 1998 consolidou a competência de gestão do trânsito urbano nos aspectos referentes ao uso das vias públicas para os municípios, possibilitando que todo o ciclo de gestão da mobilidade ficasse sob a responsabilidade das prefeituras: planejamento, projeto, implantação e fiscalização. A falta de incentivos técnicos e financeiros para a estruturação das administrações municipais para assumir essas atribuições resultou no fato de que dos 5562 municípios brasileiros, menos de 10% têm implantados seus órgãos de trânsito.

A ausência de uma política nacional de desenvolvimento urbano integrado, trouxe conseqüências dramáticas para a mobilidade urbana, que se reflete nos seguintes problemas:

A crise econômica das duas últimas décadas tornou ainda mais agudos esses problemas e hoje o transporte urbano passa por uma crise sem precedentes, com queda de 30% na demanda, elevação dos custos dos insumos e conseqüentemente da tarifa paga pelos usuários. A queda de qualidade propiciou o surgimento do transporte clandestino, trazendo prejuízos ainda maiores ao sistema de transporte público e ao trânsito, agravando os problemas de poluição e segurança.

Alguns técnicos do setor, dirigentes municipais, empresários, trabalhadores, parlamentares e organizações não governamentais vêm trabalhando para reverter essa crise, defendendo as seguintes propostas:

Entretanto, a consolidação de sistemas de transportes inclusivos, de qualidade e sustentáveis do ponto de vista econômico e ambiental, passa necessariamente pelo planejamento urbano e regional integrado, pela priorização do transporte coletivo, do pedestre e dos modos não motorizados; pela restrição ao uso do automóvel e pela participação e conscientização da sociedade.

O Estatuto da Cidade, em seus diversos artigos, reforça o serviço de transportes urbanos como serviço público e a competência da União no estabelecimento de diretrizes para seu desenvolvimento e torna obrigatória a existência de um plano de transporte urbano integrado para as cidades com mais de 500 mil habitantes e situadas nas regiões metropolitanas. Os instrumentos urbanísticos nele propugnados propiciam um maior controle sobre a expansão urbana pautada pelo mercado imobiliário e a regularização dos assentamentos urbanos, indicando um maior aproveitamento da infra-estrutura existente. Somados aos mecanismos de participação da sociedade através dos orçamentos participativos e estudos de impacto de vizinhança, abrem possibilidades para as soluções necessárias de uso mais adequado do espaço urbano, com grande repercussão nos sistemas de transportes.

A posse do novo governo e a criação do Ministério das Cidades também aponta novos rumos para o setor de transportes urbanos, favorecendo a formulação de uma política nacional, integrada às demais políticas urbanas.

Buscar um novo paradigma para o planejamento urbano para a construção do desenvolvimento das cidades, centrado na mobilidade das pessoas e não dos veículos, é a questão que se coloca para nossa reflexão.

Plano Diretor e Mobilidade: Em busca de um novo paradigma

Os Planos Diretores são o principal instrumento de ordenamento físico-territorial do espaço urbano e, conforme determinação da Constituição Federal, é obrigatório para os municípios com mais de 20 mil habitantes. Esta norma é reafirmada no Estatuto das Cidades, que indica o seu conteúdo e alguns dos instrumentos para sua efetivação.

Os Planos Diretores estabelecem normas gerais de zoneamento do território, da estruturação urbana e diretrizes para o planejamento setorial (transporte, macro-drenagem, etc).

Essas diretrizes e normas se traduzem, na prática, na legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e no planejamento setorial.

Especificamente com relação ao setor transporte, é importante ressaltar que a necessidade de deslocamento é conseqüência da distribuição e densidade de ocupação das diversas atividades pela malha urbana e que, por outro lado, o sistema viário e de transporte é um forte indutor dessa distribuição, o que deve ser considerado na formulação dessa legislação.

Por outro lado, os Planos Diretores, tradicionalmente, estabelecem diretrizes para a expansão/adequação do sistema viário e para o sistema de transporte público, considerando apenas o deslocamento dos veículos e não das pessoas. A idéia é de se trabalhar a mobilidade das pessoas, em substituição ao enfoque de se planejar apenas o transporte e o trânsito.

É necessário um novo olhar sobre a questão do planejamento urbano, com um enfoque mais sistêmico e holístico das cidades, que considere o todo e não apenas a soma dos planos setoriais, assimilando o conceito de desenvolvimento sustentável e respeito às gerações futuras.

Nesse novo enfoque o conceito de mobilidade considera a pluralidade de formas de produção, de distribuição das atividades econômicas (incluindo o transporte de carga) e, principalmente, os desejos e necessidades individuais e coletivos como ponto de partida da estruturação dos serviços de transporte e de seu planejamento e operação, com base nos seguintes princípios:

  1. Universalização do acesso à cidade;
  2. Controle da expansão urbana;
  3. Qualidade ambiental;
  4. Democratização dos espaços públicos;
  5. Gestão Compartilhada.

Esses princípios podem ser traduzidos em uma série de novos desafios.

Principais Desafios:

Conclusões:

O transporte público e os modos não motorizados e sua prioridade no espaço urbano, deve ser encarada como elemento fundamental de inclusão social, preservação ambiental, desenvolvimento econômico e geração de emprego e renda.

O direito à cidade inclui necessariamente a acessibilidade aos serviços públicos, trabalho, educação e lazer, sem a qual não é possível se falar em cidadania e saúde.

O automóvel privado é o grande poluidor do ar do planeta, sendo o transporte, onde ele é o elemento preponderante, responsável por 70% da poluição do ar em escala mundial.

As deseconomias advindas dos congestionamentos e acidentes de trânsito atingem cifras astronômicas e se tornam impeditivos ao desenvolvimento econômico das cidades.

O transporte público urbano no Brasil, segundo estimativas da ANTP - Associação Nacional do Transporte Público, foi responsável por cerca de 600.000 empregos no ano 2000, o que demonstra também sua importância como gerador de emprego e renda.

 

Ruaviva - Instituto da Mobilidade Sustentável

Liane Nunes Born - Presidente

Patrícia Maria Silva Moreira - Colaboradora

Rogério Carvalho Silva - Colaborador

 

Topo

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

 

Plano de Desenvolvimento Regional: abordagem metropolitana e aglomerados

Heloisa S. M. Costa

Este texto tem por objetivo contribuir para a discussão sobre o Plano de Desenvolvimento Regional, entendido como um instrumento que materializa uma determinada leitura do espaço e que visa balizar a intervenção dos diferentes agentes nele atuam . Assim, cabe ressaltar inicialmente, que há inúmeras possibilidades de leitura de um dado território, assim como são várias as possibilidades de exercício da política.

Por outro lado, há já um número significativo de estudos avaliando a trajetória da gestão metropolitana em décadas passadas, bem como discutindo os dilemas e dificuldades para se construir uma alternativa que de fato incorpore o conflito entre interesses regionais e locais. O caso das regiões metropolitanas e sua gestão, em que os difusos interesses metropolitanos muitas vezes se apresentam como em conflito direto com os interesses municipais, constituem a face mais visível da questão.

Em termos gerais, parece claro que o debate em torno do planejamento e gestão metropolitana e das aglomerações urbanas é marcado por ambiguidades e conflitos. Há um reconhecimento generalizado de que o modelo institucional que vigorou durante a década de setenta, associado a um estado centralizador e autoritário não é mais adequado, aliás já deixou de existir há muito tempo, sem ter sido substituído por outra proposta que dê conta de lidar com as ambiguidades e conflitos. O formato institucional que vigorou desde os anos setenta dava pouca relevância aos poderes locais e apontava para uma institucionalidade metropolitana, dando então origem a calorosos debates acerca das consequências de termos uma "quarta instância" de poder. Por outro lado, não há dúvidas que o planejamento metropolitano foi um elemento central naquele modelo, reforçado por órgãos técnicos que, em muitos casos, produziram um significativo conjunto de análises, propostas e diretrizes de intervenção, cujas marcas são ainda hoje claramente perceptíveis na leitura do espaço metropolitano. Naturalmente, como era típico daquele momento, as posturas técnicas traziam consigo doses diferenciadas de idealismo e arrogância, além de um claro distanciamento dos movimentos sociais, estes ainda em fase de reorganização. As tentativas de institucionalização da questão metropolitana que se seguiu, trouxe consigo uma forte reação ao modelo anterior, resgatando a força política dos poderes locais na forma das assembléias metropolitanas, porém sepultando, em muitos casos, as tênues tentativas de planejamento regional e ou tratamento das questões comuns à metrópole de forma articulada e solidária. Também neste caso, via de regra, a participação dos movimentos sociais permaneceu secundarizada.

Assim, sem prejuízo de toda uma discussão já acumulada na literatura sobre o tema, reconhecendo como objetivos para o planejamento e a gestão aqueles explicitados no Termo de Referência desta Conferência, quais sejam "a re-qualificação dos espaços urbano e rural, a inclusão social dos cidadãos e a melhoria da qualidade de vida …" e, principalmente, considerando os avanços já obtidos nos níveis da regulação (por exemplo com a aprovação do Estatuto da Cidade, Lei das águas, etc) e na discussão com a sociedade, esta última através dos recentes processos que culminaram com as Conferências das Cidades em todos os níveis, do local ao nacional, buscamos apontar aspectos que nos parecem pouco presentes nos debates já estabelecidos.

O primeiro aspecto engloba a discussão sobre as muitas territorialidades possíveis de uma política regional, ainda que privilegiando os aspectos das áreas metropolitanas e aglomerações, enquanto o segundo aspecto refere-se à discussão sobre quais os princípios catalisadores de políticas de desenvolvimento regional, quais as alianças e conflitos que se explicitam de forma mais sistemática, e em torno de que questões os agentes sociais se reconhecem enquanto participantes de um mesmo processo. Queremos argumentar que há uma permanente ambigüidade no discurso construído em torno das múltiplas formas de gestão compartilhada, variando num amplo espectro de posições que oscilam entre a competição e a solidariedade.

1 – A questão do recorte espacial e das muitas territorialidades

São muitas e diversificadas as territorialidades que se abrigam sob o título de desenvolvimento regional. Podemos nos referir a um conjunto de municípios que formalmente constituem uma região metropolitana "clássica", a exemplo de várias das regiões metropolitanas instituídas na década de setenta, marcada por relações centro-periferia, onde usualmente ao adensamento físico/construtivo e de investimentos econômicos das regiões centrais contrapõe-se a extensão do tecido urbano no chamado padrão periférico de crescimento metropolitano, território por excelência da precariedade sócio-ambiental e da exclusão.

Pode-se pensar em outras regiões metropolitanas, também formalmente constituídas pós-Constituição de 1988, formadas a partir da conurbação de áreas urbanas onde a dinâmica regional é marcada por menor desigualdade entre os municípios, ainda que a segregação sócio-espacial esteja presente no nível intra-urbano. Há ainda inúmeras aglomerações de municípios, formalmente reconhecidas como aglomerações urbanas ou não, estruturadas em torno de uma história micro-regional compartilhada, que muitas vezes partilham de relações de complementaridade e dependência em torno de setores produtivos específicos, a exemplo do turismo regional, conjunto de pequenas indústrias tradicionais, centros universitários, etc. Estes são alguns dos muitos arranjos possíveis, nos quais as relações de pertencimento são baseadas em arranjos político-administrativos existentes, ou seja, em conjuntos de municípios.

Há, entretanto, uma nova territorialidade da gestão regional, que se torna cada vez mais presente enquanto realidade sócio-política, estruturada em torno do uso e da apropriação dos recursos naturais. Algumas destas novas territorialidades vem sendo acompanhadas de novos modelos de gestão, sendo emblemático o caso das bacias hidrográficas e da institucionalização do modelo dos seus comitês gestores. Há outras possibilidades entretanto: conjuntos de áreas mineradoras, petrolíferas, entornos de reservas naturais, conjuntos históricos e turísticos, regiões costeiras, unidades de conservação que prevêem ocupações urbanas como APAs, entre muitas outras. Assim definidas, estas novas territorialidades, naturalmente, são descoladas dos limites político-administrativos institucionalizados, muitas vezes superpondo-se a eles e trazendo consigo não só novas instâncias de gestão com se materializando em novos campos de conflitos e lutas sociais em torno de questões reconhecidas como sócio-ambientais.

Cada uma das territorialidades acima mencionadas, a político-administrativa estruturada a partir das dinâmicas urbanas e produtivas e aquelas estruturadas a partir da apropriação e controle dos recursos naturais, internalizam inúmeros desafios relacionados principalmente ao grau de correspondência entre a realidade do território e de suas práticas sociais por um lado e, por outro, ao descompasso entre os níveis de concepção e de efetiva institucionalização da política regional. Desafio ainda maior será pensar que cada vez mais estas duas matrizes de leitura do espaço interagem e se superpõem espacialmente. Da mesma forma, os movimentos sociais organizados, assim o foram a partir das mesmas matrizes espaciais e podem vir a se reorganizar em múltiplas alianças a partir de tais desejáveis, embora complexas superposições. Qualquer plano de desenvolvimento regional, para não correr novamente o risco de novamente se constituir num discurso descolado da realidade, terá que compreender e superar esta duplicidade de leituras e de concepções de intervenção.

 

2 – Diversidade e desigualdade sócio-espacial e o difícil reconhecimento de questões supra-locais

O conceito de aglomeração urbana, qualquer que seja a escala assumida pelo respectivo processo de urbanização, pressupõe a existência de uma única área urbana (entendida como realidade sócio-espacial-econômica-ambiental-funcional) formada por mais de um município (entendido enquanto uma unidade político-administrativa). Esta definição quase simplória, por não acrescentar elementos que a qualifiquem, traz embutida a hipótese segundo a qual há a necessidade de algum grau de gestão compartilhada ou de tratamento conjunto de seus problemas e de suas potencialidades. Dito de outra forma, significa que a busca de tais formas de gestão é uma imposição do real. Por outro lado, o reconhecimento de que as aglomerações urbanas estão se tornando cada vez mais significativas no processo da urbanização brasileira contemporânea, confirma uma realidade espacial para a qual não há um correspondente recorte na esfera político-institucional.

A Constituição de 1988, tida como um marco na consolidação da democratização da gestão urbana no Brasil, conferiu roupagem institucional a uma série de práticas e experiências de gestão pública participativa, voltadas para o que se convencionou chamar de "inversão de prioridades" na definição tanto da alocação de recursos públicos como dos setores da sociedade destinatários das políticas. O resgate da importância do município na gestão do território constitui um dos princípios centrais deste novo momento que, ao contrário da centralização excessiva do período anterior, possibilitou o desenho de intervenções mais voltadas para as necessidades locais e a incorporação de uma multiplicidade de novos agentes sociais.

As aglomerações urbanas e regiões metropolitanas são, ou foram, áreas de grande dinamismo econômico, situação que desencadeia processos migratórios regionais e supra-regionais, geralmente resultando em um tecido urbano que revela um processo de diferenciação e segregação sócio-espacial presente na maioria das áreas urbanas brasileiras. Tais áreas, no que se refere às perspectivas de desenvolvimento futuro, vivem de maneira exemplar o dilema que envolve, por um lado, os rumos tomados pela descentralização administrativa após a constituição de 1988, com maior autonomia para os municípios e, por outro lado, o fenômeno da competição entre os lugares para atração de investimentos, que se tornou mais acentuada com os processos de restruturação produtiva, flexibilização da produção e de globalização econômica.

Estes dois elementos têm significado dificuldades quando se pensa em políticas compartilhadas para áreas metropolitanas e aglomerações urbanas. As situações de poderes econômico e político desiguais que marcam tais aglomerações tornam ainda mais difícil iniciativas de solidariedades supra-municipais, o que resulta na permanência ou aumento das desigualdades internas às aglomerações. Um dos desafios presentes refere-se à capacidade que propostas baseadas na solidariedade têm de dialogar com ou articular-se às tendências crescentes de competição entre os municípios e eleição de setores prioritários para o investimento econômico.

São cada vez mais comuns as ocorrências de iniciativas de soluções compartilhadas entre municípios, independente de terem acordos institucionais mais amplos: há inúmeras experiências ainda a serem cuidadosamente avaliadas de consórcios de serviços que requerem muitos investimentos e de apropriação coletiva, ou serviços indispensáveis ao funcionamento das atividades econômicas do tipo telecomunicações e transportes. Algumas iniciativas merecem destaque por seu caráter inovador e pelo efeito-demonstração regional no trato das questões sócio-ambientais, como aterros sanitários ou políticas micro-regionais de controle da poluição. Outras, tem respaldo em diagnósticos de desenvolvimento regional e vem demonstrando o potencial de provimento de infra-estrutura regional, a exemplo de atuações do SEBRAE, de turismo regional, etc… Poucas e tímidas são ainda as experiências na área de regularização fundiária e habitacional, saneamento básico e políticas territoriais populares. Acreditamos que um plano de desenvolvimento regional inovador pode propiciar negociações com vistas a instituição de mecanismos de solidariedade regional, não só na esfera da produção e dos serviços produtivos, mas também na esfera da reprodução: habitação popular, transporte de massa, educação básica, etc…

Outro elemento importante a ser considerado, diz respeito à ambigüidade com relação à própria concepção de gestão metropolitana no momento atual. Ao delegar aos estados a responsabilidade por estabelecer parâmetros para a gestão supramunicipal, a Constituição de 88 transferiu também àqueles, o ônus político de discutir uma matéria que significa de alguma forma interferir na autonomia municipal recém conquistada. Em alguns estados como por exemplo Minas Gerais, a Constituição estadual optou por um texto bem mais flexível do que a legislação anterior, especialmente por condicionar a institucionalização de regiões metropolitanas à adesão voluntária dos municípios, formalizada através dos legislativos municipais. Está reafirmada assim, a necessidade de estabelecimento de um pacto político regional, um novo pacto territorial. Tal pacto, entretanto, necessita de atualização constante que vá além das mudanças partidárias na composição das partes integrantes, ou seja, os municípios, a cada eleição municipal.

Algumas instâncias supra-municipais de gestão, sejam elas regiões metropolitanas ou consórcios de municípios tem adotado composições em que comparecem uma instância colegiada de deliberação (conselho, assembléia) e um fundo carreador de recursos para investimentos em questões de interesse comum, tais como: sistema viário e transportes, saneamento básico, uso do solo e dos recursos hídricos, preservação ambiental, habitação, abastecimento, ensino, saúde e planejamento do desenvolvimento econômico.

A instância colegiada representa o foro de convergência da sociedade civil organizada, abrigando representações dos diversos conselhos municipais, das empresas e de entidades associativas em geral. Seu funcionamento e capacidade de articulação com os demais níveis de gestão, certamente de concepção inovadora, ainda está para ser construído na prática. A gestão dos fundos, por outro lado, traz a tona todo o conflito distributivo, pois o fundo tem sentido enquanto tal, principalmente se for para corrigir distorções entre e intra municípios, logo pressupõe um fluxo de saída diferente do de entrada dos recursos. Tal posição, de difícil negociação, pressupões maturidade política e explicitação dos conflitos, tanto em termos das unidades territoriais envolvidas, quanto em termos das representações sociais e os interesses econômicos que representam.

Como a atual discussão em torno da gestão metropolitana/regional tem sido fortemente marcada pela rejeição ao anterior de planejamento e a gestão, a idéia de institucionalização de aglomerações urbanas por meio de novas regiões metropolitanas ou de consórcios de municípios com atribuições abrangentes de planejamento e desenvolvimento regional, caminha na contramão das tendências de autonomia municipal e de competitividade entre municípios em torno de investimentos em seus respectivos territórios.

O que se observa de fato é um certo descompasso entre a institucionalização de mecanismos e instrumentos que virão tornar operacionalizável a gestão metropolitana/regional e o conjunto de práticas específicas de gestão de alguns serviços entre municípios. É importante ressaltar que só há consórcio se há interesse político daqueles que o integram para levar avante as políticas a que o consórcio se refere.

Hoje, mesmo os municípios mais pobres, não parecem tão sensibilizados para implantação de políticas redistributivas, do tipo melhoria das condições de saneamento básico ou habitação (através, por exemplo, de um fundo comum), quanto em atrair investimentos, para melhorar a renda municipal e aí investir nas necessidades do município. Ou seja, serem também economicamente competitivos. Não parece ser generalizada a percepção de que há um processo de produção do espaço, no qual desigualdades da urbanização se materializam num município via, por exemplo urbanização periférica, como fruto de um mesmo processo econômico e espacial ocorrido em outro, hoje rico. A idéia de que "cada um cuida do seu território" é mais forte .

Entre as ambigüidades que envolvem o debate, estão as estratégias de planejamento e políticas de atração de investimentos, muitas delas associadas a vigorosas estratégias de marketing urbano/regional que buscam ressaltar as qualidades dos lugares, principalmente num momento caracterizado por uma tendência à dissolução das barreiras espaciais (Harvey, 1995). Ao mesmo tempo, há no país uma ampla gama de experiências em andamento, envolvendo políticas consorciadas nas mais diferentes áreas de atuação das instituições. Em ambos os casos, seja individualmente ou de forma articulada com outros municípios, as áreas urbanas empenham-se em diferenciar-se das demais, tornando-se atrativas principalmente para atividades produtivas de ponta ou para fluxos financeiros e de consumo.

Por outro lado, qualquer gestão metropolitana abrangente, pressupõe alguma forma de pacto de solidariedade em torno de questões comuns. Possivelmente o dilema seja identificar quais questões mobilizam população, empresas, instituições e governos municipais. Aparentemente, questões ligadas à oportunidade de desenvolvimento econômico encontram mais respaldo como elementos de articulação de ações conjuntas intermunicipais do que questões ligadas à reprodução da população como saneamento, habitação, entre outras (Costa e Costa, 1999). Nestas circunstâncias, fica clara a importância de um plano de desenvolvimento regional que incorpore uma visão mais abrangente, não só de oportunidades de investimentos, mas de diminuição do usualmente grave passivo sócio-ambiental que marca nossa urbanização.

Referências Bibliográficas:

 

COSTA, G.M.; COSTA, H.S.M. 1999. Região metropolitana e competitividade intermunicipal: uma conciliação possível? In: VIII COLÓQUIO INTERNACIONAL SOBRE PODER LOCAL, Salvador. Anais de resumos…Salvador: UFBa.

COSTA, G.M.; COSTA, H.S.M. Novas e velhas diferenças: desafios à gestão metropolitana do Vale do Aço. Cadernos de Geografia, n. 18, Belo Horizonte, PUC-MG, 2002.

HARVEY, D. 1995. Espaços urbanos na "aldeia global": reflexões sobre a condição urbana no capitalismo do final do século XX. Belo Horizonte, mimeo.

IPEA/IBGE/NESUR 1999. Caracterização e tendências da rede urbana no Brasil, v. 1. Campinas: UNICAMP.IE.

 

Topo

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

 

Plano diretor de desenvolvimento regional: o caso da região metropolitana da Grande Florianópolis

 

Tereza Cristina Pereira Barbosa e Antoninha Santiago

 

I . Apresentação

O mote deste trabalho, o tripé cidades especiais, planos diretores, regiões metropolitanas e seu desenvolvimento regional.

Há muito que se falar sobre cada um destes aspectos mas, pela experiência de anos de trabalho ambiental e comunitário em Florianópolis, escolhemos aqui uma pequena parte de Santa Catarina para tratarmos de alguns problemas comuns a inúmeras cidades brasileiras.

Abordaremos as diferentes cidades da região metropolitana de Florianópolis, considerando especialmente a sua localização litorânea como forte influência turística. Além disso, este aglomerado urbano, como se verificará, reúne diversas pequenas cidades em situação especial, seja como ribeirinha, histórica, sobre nascentes, em ilha e com diferentes atrativos turísticos - do religioso ao veranista.

Esta situação modifica e se agrava quando a pressão urbana é exercida em municípios com estas características. E é precisamente no planejamento deste tipo de cidades que vamos focar nosso trabalho, considerando que são exatamente estas peculiaridades que concentram suas maiores potencialidades econômicas. Mais do que isso, pretendemos enfatizar a importância da participação popular nos planejamentos de planos diretores e para o pleno exercício da cidadania.

Ao compartilhar nossas experiências neste fórum, esperamos incentivar as discussões sobre o tema e enriquecer nosso trabalho com novas contribuições.

 

II . Cidades

Segundo o Aurélio, cidade é um complexo demográfico formado social e economicamente por uma importante concentração populacional não agrícola, isto é, dedicada a atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro, educacional e cultural - urbe. Nesta definição não são contempladas as pequenas cidades rurais. Entretanto, rural ou urbana, a cidade é habitada por cidadãos limitados tanto por um espaço territorial como pela disponibilidade de recursos naturais - água, solo e natureza (paisagem e biodiversidade). Esta visão espacial do território estabelece um desenvolvimento harmonioso e sustentável que pode beneficiar a qualidade de vida do conjunto.

Um pré-requisito para planejar o desenvolvimento sustentável é pactuar os desenvolvimentos econômico e ecológico, isto é, ao mesmo tempo usar e explorar os recursos naturais, e preservá-los para as futuras gerações. Este desenvolvimento equilibrado implica uma re-ordenação das atividades sociais, demográficas, econômicas e ambientais em um espaço com características ecológicas (clima, solo, relevo, recursos hídricos, latitude...) e culturais (patrimônio histórico, arqueológico, referencial, atividades...) extremamente variados.

No Brasil, o crescimento das cidades na maior parte das vezes ocorreu ao acaso, sem um ordenamento que contemplasse o adensamento populacional e a manutenção dos recursos naturais, culturais e sociais. A perda destes bens ou dotes foi aceita pela sociedade brasileira de maneira quase conformista para benefício do "desenvolvimento". Veja-se o exemplo de praias (Bom Abrigo, Cachoeira do Bom Jesus, Praia Brava, Itapema....), lagoas (da Conceição) e riachos onde a falta saneamento básico (esgotos a céu aberto e animais domésticos circulam). Apesar da degradação odorífera e visual, estes lugares atraem massas humanas no auge do verão, inclusive em capitais como Florianópolis, citada na mídia nacional como uma das capitais da qualidade de vida.

Nas cidades litorâneas, o processo de "desenvolvimento" vem sendo problemático. As restingas e dunas da orla marinha, verdadeiros filtros retentores de águas das chuvas, transformaram-se em filé mignon da construção civil. Nestes mesmos locais, as grandes marés causam sérios estragos aos municípios turísticos que desobedecem os recuos legais (Resoluções do CONAMA 004/85 e 303/02). O quadro da orla catarinense, apesar do incansável trabalho da sociedade civil organizada, é devastador. As cidades ficam iguais, é a " mesmificação ".

A ordem é favorecer a industria da construção civil, geradora de emprego e "renda". Para isso, são aprovados aumentos de densidades populacionais (gabarito de prédios) em áreas de preservação permanente, desprovidas de rede e tratamento de esgotos. Para estes locais, são propostos planos diretores que priorizam o sistema viário e a verticalização em detrimento do saneamento básico e outras necessidades da sociedade. A finalidade é aumentar o número de turistas e, com isto, acelerar a circulação da economia .

Mesmo bairros projetados não contam com rede e tampouco áreas previstas para tratamentos de esgotos. Também ali, ações individuais prejudicam o conjunto da área por não obedecerem critérios técnicos apropriados. Existem condomínios onde são construídos prédios residenciais que, apesar de apresentarem fossas sépticas, desrespeitam a altura do lençol freático, o tipo de solo, o distanciamento inter-residências e entre fossas construídas.

Outro problema grave enfrentado principalmente em cidades litorâneas que recebem veranistas além da população normal, é a crônica falta de água que se acentua à medida em que a cidade cresce sem respeitar as limitações da sua potencialidade hídrica. Calcula-se que a média de consumo de água per capita em Santa Catarina seja de cerca de 200 litros/dia .

Além dos problemas de saúde e o desconforto da falta de um bem como água, a falta do estudo de impacto ambiental nos planejamentos urbanos costumam redundar em transtornos como alagamentos, inundações e secas. Nos primeiros casos, isto ocorre porque os planejadores não observam o relevo e o tipo de solo da região que está sendo ocupada. Na maior parte das vezes, o planejamento é feito de forma meramente distributiva de espaços para construções. Estas obras também ocupam e impermeabilizam o solo, prejudicando a recarga do lençol freático. Daí a importância de limitar o espaço construído mesmo em áreas particulares, o que evitaria a impermeabilização do solo e as dimensões de obras e prédios que já estão privatizando boa parte da paisagem litorânea em Santa Catarina.

Outro problema é o distanciamento dos serviços institucionais (de saúde, educação, segurança, bombeiros, bancos, correios, culturais, áreas de lazer, etc) que leva os moradores dos bairros a embarcarem em seus carros e seguirem pelas mesmas vias já engarrafadas às regiões centrais das cidades. Para quem utiliza o transporte público, o desconforto só é maior pelo tempo gasto e pelo incômodo de ônibus cheios e caros.

Num resumo, pode-se dizer que hoje o crescimento das cidades é caracterizado pela expansão do uso da terra para construção de sistemas viários e ocupação humana. Isto favorece principalmente o setor imobiliário, a construção civil e contempla o uso de carros particulares em detrimento de sistemas alternativos de transportes coletivos e opcionais como ciclovias e calçadas ou trilhas para pedestres.

Ações individuais, como de pessoas que deixam as grandes cidades em busca de uma vida em contato com a natureza, também constituem riscos para a qualidade de vida das cidades médias. Pois grandes massas urbanas migram de grandes metrópoles para lugares intactos onde acabam destruindo aquilo que buscam: a natureza. Esta contradição se verifica nos desmatamentos, loteamentos, parcelamento do solo em áreas de grande relevância cênica e de bem-estar social e privatização da paisagem reproduzindo muitas vezes o ambiente do qual fogem.

Este último item é especialmente presente em cidades turísticas e litorâneas, ricas em belezas naturais e especialmente cobiçadas pela proximidade com o mar. É nesses locais que hoje se verifica grande quantidade de loteamentos, shopping centers e grandes projetos sem estudos de impacto ambiental (EIA) e de vizinhança (EIV). Grandes empreendimentos turísticos comprometem a paisagem e a identidade cultural destes lugares de maneira permanente.

O irônico é que a mão de obra destes milhares de imóveis construídos para venda e aluguel é composta exatamente por aqueles que pouco ou nada possuem. Vítimas do êxodo rural, eles buscam na urbe o que não encontram no interior - renda, escola, saúde, aperfeiçoamento profissional, trabalho, etc. - e engordam nas cidades as filas de emprego para a construção civil. Sem qualificação, baixíssimo salário e excluídos da possibilidade de aquisição da casa própria, é este contingente que, muitas vezes, abre novas áreas de ocupação ilegal nos arredores de cidades, estradas, sob pontes ou mega-empreendimentos. São ocupações de áreas de risco, favelas e outros tipos de submoradia.

Tão grave como a degradação do ambiente em si, primeira vítima deste tipo de fenômeno acelerado pelo êxodo rural, é a degradação social recorrente, conseqüência da super valorização da terra e da falta de políticas públicas que fixem as populações nos seus lugares de origem.

Junto com o meio ambiente, um alvo freqüente da expansão das cidades é, por incrível que pareça, o próprio patrimônio histórico. Ressalvando iniciativas como as que revitalizaram os centros históricos na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraíba, o que se verifica na grande extensão do país é o total desrespeito e desleixo com prédios, residências, praças, largos, monumentos e outras referências históricas e arquitetônicas que dão identidade ao lugar.

O aumento dos problemas sociais, ambientais e culturais de uma cidade sinaliza a queda da qualidade de vida manifestada pela exclusão social sob a forma da insegurança, miséria, doença e desemprego.

 

III. A região metropolitana e o aglomerado urbano da Grande Florianópolis

Vários planos de desenvolvimento regionalizado foram propostos para as diferentes regiões metropolitanas, inclusive com inovações sob o ponto de vista ambiental, social e econômico. Porém, sua implantação jamais chegou a acontecer ou corrigir as disparidades sociais preexistentes. A região metropolitana de Florianópolis (RMF) é constituída por 22 municípios que apresentam características ambientais, culturais, históricas e sociais diversas, e o aglomerado abrange quatro cidades (São José, Biguaçu, Palhoça e Florianópolis)

Assim, para uma melhor compreensão do desenvolvimento regional e suas potencialidades, detalharemos algumas destas cidades e as peculiaridades que as fragilizam impondo a necessidade de um planejamento responsável e urgente. Muito embora esta não seja uma exigência legal, considerando o tamanho dos municípios, com menos de 20 mil habitantes.

Anitápolis: De colonização alemã, portuguesa, açoriana, italiana e russa, com 3.656 habitantes numa área de 582km2, a cidade é cercada por montanhas e florestas ricas em mananciais. A 108 km de Florianópolis e entre 600m e 1300m acima do nível do mar, na região nascem dezenas de rios, entre eles os cinco mais importantes do estado: Tubarão, Tijucas, Itajaí-Açu, Canoas e Cubatão - trata-se do maior manancial hidrográfico de SC. Até recentemente a economia era voltada para a monocultura de fumo, exploração do carvão vegetal e algumas hortaliças. Hoje a região abriga iniciativas de agroecologia e economia solidária. Ainda enfrenta problemas com queimadas e o abandono da terra pelos habitantes, que a vendem para o cultivo de Pinus.

Antônio Carlos: Colonizada por alemães, portugueses e italianos, a cidade conta com 6.000 habitantes distribuídos numa área de 205km2 a 30m acima do nível do mar e a 30km de Florianópolis. Conta com uma vegetação exuberante (Mata Atlântica) e é rica em cachoeiras e saltos. Economia é baseada na produção de hortifrutigrangeiros, usa agrotóxicos.

Águas Mornas: Com 5.000 habitantes nos seus 327km2 a 40 km de Florianópolis, as principais atividades desta cidade de colonização alemã são a produção de hortaliças e a exploração do lençol termal. Ribeirinha ao rio Cubatão e a 70m acima do nível do mar, parte do município faz parte do Parque da Serra do Tabuleiro.

Biguaçu: Com 49.000 habitantes nos 326km2 a 2m acima do nível do mar e a 18 km de Florianópolis, esta cidade de colonização açoriana, conta com um parque industrial forte, mas ainda apresenta a pecuária e agricultura como atividades comuns.

Canelinha: Entre Tijucas e Nova Trento, a 67 km de Florianópolis e a 10m acima do nível do mar, este pequeno povoado de colonização alemã e açoriana com 9.004 habitantes em 151km2 tem na indústria de cerâmicas para construção civil sua principal atividade econômica. Ali também são promovidos campeonatos internacionais e nacionais de motocross e vôo livre. Faz parte do aglomerado urbano de Florianópolis. É cidade passagem para Nova Trento.

Nova Trento: Com 10.000 habitantes, a cidade de colonização italiana ocupa uma área de 398,2km2 e fica a 75 km de Florianópolis. Trata-se de uma situação especial por ser a cidade da Santa Madre Paulina, a primeira santa brasileira. A expansão do turismo de massas religiosas começa a interferir nas cidades do entorno (São João Batista, Canelinha e Tijucas). A falta de infra-estrutura para visitação exige um urgente planejamento que melhore a qualidade de vida dos moradores e nativos, e não voltado apenas para o turismo rentável a curtíssimo prazo. Há possibilidade de uma alta especulação imobiliária. Existe uma pequena agricultura e o plantio de uva para fabricação do vinho colonial vendido nas cantinas da cidade.

Palhoça: A 30km ao Sul de Florianópolis e com seus 103 mil habitantes distribuídos numa área de 361km2 a 3m acima do nível do mar, a cidade hoje produz escargots, mariscos, ostras e camarões. Conta com o sítio ecológico do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro e praias turísticas como Guarda do Embaú, Pinheira, do Sonho e Enseada do Brito). Sofre freqüentemente com enchentes do rio Maruim, já muito assoreado e cheio de lixo.

Paulo Lopes: Com 5.925 habitantes em 447,1km2, as principais atividades econômicas desta cidade a 2 m acima do nível do mar e a 50km de Florianópolis ainda são a agricultura e a pesca. Recebe os resíduos sólidos de Florianópolis. Tem praias e cachoeiras. Faz parte do aglomerado urbano de Florianópolis.

Santo Amaro da Imperatriz: Com 17 mil habitantes numa área de 352,4km2, a 18m do nível do mar e a 24 km de Florianópolis, é o verde vale das termas e do turismo de saúde com estância hidromineral, belas paisagens, natureza e cenários. Cidade ribeirinha ao Cubatão e com relevo montanhoso, o local é ideal para a prática de esportes radicais. Apesar deste perfil ainda tem na agricultura uma atividade importante, principalmente no cultivo de milho, tomate e batata.

São João Batista: Cidade de colonização italiana com 17.000 habitantes numa área de 204km2 a 30m acima do nível do mar e a 70 Km de Florianópolis. Principal atividade econômica é a industria calçadista. Promove anualmente a feira dos calçados catarinense.

São Pedro de Alcântara: Com 3.700 habitantes nos seus 140,6km2 de área a 31 km de Florianópolis e 300m acima do nível do mar, esta cidade de colonização alemã e luso-açoriana é ribeirinha do rio Cubatão e tem na agricultura sua principal atividade econômica. A região também atrai pelas belezas naturais e antigos casarões.

São José: Cidade litorânea a 10 km de Florianópolis, abriga 147.000 habitantes e apresenta forte comércio de variedades e potencial histórico preservado. Por funcionar como uma cidade-dormitório para a capital, a industria imobiliária cresceu demais e o grande numero de edifícios sem tratamento de esgotos afetou muitos rios hoje poluídos. Dispõe de hotéis e restaurantes.

Tijucas: De colonização açoriana numa área de 278,4km2 a 45 km de Florianópolis e 21.000 habitantes, a cidade tem uma história e diversidade cultural variada. Por estar a apenas 2m acima do nível do mar, era grande a incidência de enchentes. A economia se baseia na pesca e agricultura. É Ribeirinha ao rio Tijucas, que banha São João Batista, Canelinha e desemboca no mar adjacente à cidade já completamente poluído pela indústria de cana de açúcar, de calçados e esgotos domésticos de todas estas cidades.

Florianópolis: Com 342 mil habitantes numa área de 436,5km2 divididos em região continental (12,1km2) e insular (424,4km2), esta cidade de colonização açoriana hoje recebe visitantes e novos moradores de diversas regiões do país e do mundo. Só a peculiaridade de ter maior parte de seu território numa ilha seria por si só o suficiente para classificá-la como cidade especial, mas 42% da sua extensão está em área de preservação permanente. É rica em Mata Atlântica e unidades de conservação, praias e lagoas e, por isso, turística. Historicamente é uma cidade administrativa (capital do estado) e educacional, por abrigar grande número de universidades e escolas. A 25m acima do nível do mar, é a segunda cidade em população do estado e atrai grande quantidade de turistas, especialmente do Mercosul. A densidade demográfica da cidade é estimada em 760 habitantes por km2. A parte insular da cidade depende visceralmente do abastecimento de água e energia elétrica do continente, o que a torna suscetível a problemas como o recente blecaute no final de outubro. Entretanto, as praias do Norte e Sul da Ilha vivem da água do lençol freático das planícies costeiras.

Apesar dos três planos diretores diferenciados por região (áreas central e continental, Trindade e adjacências e balneários), a cidade cresce desordenadamente para cima e para os lados, apesar das lutas sociais contra o adensamento e poluição previstos nos planos diretores do governo municipal.

Se, segundo o IBGE, existiam em 2001 42 favelas na capital, tão preocupante quanto isto são os números referentes aos loteamentos irregulares, ilegais e clandestinos. Ao contar com a cumplicidade do legislativo municipal, que altera quase que diariamente leis do zoneamento, a construção civil avança sobre dunas, restingas, encostas de morros e, principalmente, privatiza a paisagem e impede o acesso às praias com muros e cercas em caminhos históricos. Estas ilegalidades ambientais não só desfiguram a paisagem que atrai o turismo como comprometem seriamente a qualidade de vida de moradores e visitantes.

No verão, o inchaço da cidade transforma a vida de todos num verdadeiro caos de filas e engarrafamentos, agravado pela crônica falta d'água e racionamentos. Há reclamações de turistas, praias poluídas, ruas repletas de carros nas calçadas, enorme quantidade de lixo nas ruas e praias e a criminalidade aumenta consideravelmente.

Durante todo o ano, a maior parte dos bairros da capital sofre com a falta de saneamento básico, escolas, serviços de saúde, sistema de transporte, áreas de lazer, bibliotecas.

A água da Grande Florianópolis

Desde 1946, o abastecimento d'água do aglomerado urbano da grande Florianópolis, hoje com 650 mil habitantes (incluindo centro da capital até Sto. Antônio de Lisboa, Palhoça, Santo Amaro, São José e Biguaçu) vem do rio Vargem do Braço, localizado em Santo Amaro da Imperatriz. A partir de 1992, o rápido crescimento demográfico da região exigiu que fosse adicionado um novo manancial de abastecimento, o rio Cubatão.

Embora este rio seja a fonte da vida dos grandes municípios do aglomerado urbano da Florianópolis ele vem sendo vítima dos mais variados tipos de poluição e contaminação, comprometendo o abastecimento e a saúde destas populações.

A intensa atividade agrícola e uso de defensivos, a retirada da mata ciliar, a produção de carvão vegetal e a pecuária, além das contaminações domésticas das cidades ribeirinhas do Cubatão prejudicam a qualidade e o tratamento da água. A isto se acrescenta a exploração mineral de pedras, o esgoto hospitalar e despejo de águas residuárias da indústria metal - mecânica, cujas denúncias se repetem ao longo dos anos desde 1988. O descuido levou o "Júri das Águas", em 1993, à "condenação simbólica" dos órgãos públicos responsáveis pelo Rio Cubatão. Apesar disto, o comitê de bacia hidrográfica, criado naquele mesmo ano, avançou pouco.

Além disso, cerca de 40% da água que sai da adutora para abastecer o aglomerado urbano é perdido por problema na rede distribuição, através de vazamentos, equipamentos obsoletos e por acidentes cujos danos não são reparados imediatamente.

Outros problemas comuns permeiam as cidades ribeirinhas do Cubatão ou do grande aglomerado urbano de Florianópolis. Nestas cidades há falta de escolas profissionalizantes, de áreas de lazer, de serviços de saúde, déficit de moradia, saneamento básico, sistema de transporte, e empregos. São inexistentes ou escassos os cinemas, teatros, bibliotecas, praças e pontos de encontro entre os moradores.

 

IV. Plano Diretor

O tamanho das cidades varia desde grandes metrópoles super povoadas até pequenos povoados rurais com densidades populacionais extremamente reduzidas. Neste último caso, muitas vezes as populações estão distribuídas em grandes territórios deficientes de todas as facilidades estruturais urbanas (saúde, educação, trabalho e renda, economia, lazer, cultura, transportes, comunicações...). Estas carências provocam uma migração social para áreas mais ricas e equipadas. Entretanto, esta mesma estrutura que parece suprir as necessidades das populações tornam-se rapidamente obsoletas pelas grandes demandas do êxodo rural.

Bem, para que uma cidade agrícola, turística ou aglomerado urbano cumpra seu papel social e as facilidades do convívio coletivo sejam compartilhados entre as gerações atuais e futuras, é indispensável um planejamento - ou Plano Diretor - que respeite as características naturais, culturais, econômicas e sociais locais, além de relevar as potencialidades que o lugar oferece. Neste último item se inclui por exemplo, riquezas minerais, recursos hídricos, monumentos históricos, possibilidades de atividades laborais geradoras de emprego e renda e muitos outros.

O Plano Diretor (PD) é o instrumento básico da política e desenvolvimento urbano. Ele direciona o desenvolvimento de um lugar, estabelecendo no espaço do solo e recursos hídricos, além dos assentamentos humanos e do sistema viário, as melhorias de uso coletivo, social e ambiental, em acordo com as disponibilidades e potencialidades locais. O PD é transformado em lei pela Câmara de Vereadores.

A intenção do PD é alocar as facilidades como escolas (posicionamento, número de alunos, faixa etária, profissionalização), arruamentos (local, dimensionamento, custo, calçadas, ciclovias), áreas institucionais (hospitais, postos de saúde, delegacias, universidades, praças, bibliotecas, bombeiros...),áreas comerciais (clubes, bares, boates, restaurantes, shopping... ), áreas de preservação (natural, histórica, paisagística, cênica), área de serviços públicos, áreas de lazer em um espaço limitado para que o conjunto da sociedade seja privilegiado. O Plano estabelece a medida do crescimento possível levando em conta os recursos disponíveis para o desenvolvimento pleno dos habitantes locais e a manutenção da qualidade de vida para todos (moradores e visitantes).

Diferentemente desta visão, os planos diretores dos anos 70/80 viam o espaço urbano como uma área plana, vista de cima, onde eram desenhados o assentamento humano, industrial e o sistema viário. Estes planos concebidos em gabinetes desconheciam a existência de áreas frágeis, recursos naturais, história e, principalmente, ignoravam a existência de pessoas. Neles, os habitantes não passam de números de densidade populacional projetada para um futuro sem considerar a sustentabilidade do solo e dos recursos naturais ao longo dos anos. Em geral, estes planos priorizam facilidades para o capital externo (infra estrutura viária, comunicações, energia, redução de IPTU) mas desconsideram os potenciais geradores de emprego e renda. Inspirados em modelos estrangeiros, estes planos são distantes da realidade local e de difícil aplicação. Duas cidades crescem em paralelo: a imaginária ou desenhada pelos interesses fixos do modelo, rica em sistema viário, e a real, desenhada pelas carências e necessidades da população: sem ruas, sem calçadas, sem infra estrutura, sem água, sem moradia.... A complexidade do plano impede o cidadão de defender seus interesses individuais ou coletivos, favorecendo o surgimento de novos sem terras, sem tetos.

Considerando que os planos diretores são tão importantes para as localidades e a sociedade nelas inseridas, vale lembrar a necessidade de Estudos e Relatório de Impacto Ambiental (Resolução 001/86 do CONAMA) em qualquer planejamento. Trata-se de uma ferramenta indispensável para o planejamento equilibrado e sustentável ao longo dos anos. Mesmo cidades com menos de 20 mil habitantes, considerando suas peculiaridades, necessitam sim, de um plano diretor que contemple as necessidades dos moradores deficientes ou não, pactuada com a preservação do patrimônio natural, histórico e cultural. Isto se faz com Estudo de Impacto Ambiental.

Perguntas para elaboração de um plano diretor:

Quais as disponibilidades atuais?

Quais as necessidades atuais?

Quais as possibilidades de integração?, cooperação?

Interesses necessidades comuns entre cidades?

Sobre uso do solo:

O que pode ser parcialmente ocupado?

O que pode ser integralmente ocupado?

O que não pode ser ocupado em hipótese alguma (Áreas de Reserva, preservação permanente, preservação cultural etc)?

Qual a disponibilidade hídrica do lugar?

A partir das respostas a estas questões é que começa a ser pensado o plano diretor de uma localidade.

 

V. Considerações finais

Só muito bem informada a comunidade poderá efetivamente participar e contribuir na elaboração de um plano diretor adequado, justo e factível legalmente. O processo de planejamento e gestão feito em parceria entre o estado, empresariado e a sociedade civil organizada promete justiça e oportunidades.

Neste tripé, são indispensáveis profissionais das áreas de geografia, arquitetura, biologia, sociologia, engenharia (sanitária, ambiental, civil etc), comunicação, direito, entre outros. Este grupo multidisciplinar, em conjunto com as universidades, fornecerá as informações pertinentes que definirão as limitações ambientais e sociais da cidade em questão. Sem estas informações e sem o respeito a elas, o plano torna-se caótico e insustentável. Uma forma de garantir o acesso a essas informações foi levantada nas recentes conferencias das cidades, com a idéia de criação de observatórios urbanos que possibilitem compreender, monitorar e prever o processo de desenvolvimento, com fartas informações sobre a localidade e seus habitantes.

Mas além disso, devem participar as câmaras de vereadores, órgãos públicos de abastecimentos de água, luz, tratamento de esgoto, órgãos de planejamento com representantes das áreas da saúde, educação, segurança e o Comitê de Gerenciamento de Bacias Hidrográficas, principalmente para cidades ribeirinhas ou abastecidas por estas - que sejam pessoas de decisão nesse processo. Há que se pensar, da mesma forma, as cidades do litoral, que necessitam urgentemente dos planos estaduais de gerenciamento costeiro. A legitimação e viabilidade do plano diretor será proporcional à democracia do processo e à educação do cidadão no exercício pleno da sua cidadania.

Mesmo os povoados agrícolas precisam ser pensados como cidades rurais cujo planejamento fomente a permanência do homem no campo preservando sua história, seus recursos naturais e culturais e, portanto, sua dignidade. Esta é uma forma de combater o inchaço das grandes cidades, pois ninguém é retirante porque quer ou gosta - é porque o seu lugar de origem não lhe dá condições de subsistência.

Há um fator homogêneo que também já foi identificado na conferência nacional das cidades: as pessoas precisam e querem pequenas soluções: infra-estrutura adequada, transporte urbano de qualidade (ciclovias, calçadas para pedestres, estacionamentos) escolas, praças, espaços públicos, áreas verdes de lazer, trabalho e renda.

O que se discute agora é como fazer este planejamento. Se este processo vai exigir a sensibilização e mesmo reeducação no sentido da participação comunitária (de cidadãos e órgãos públicos), o questionamento mais freqüente é quanto aos recursos financeiros. Neste aspecto, existem novos caminhos para a preservação da natureza e o desenvolvimento sustentável: são órgãos nacionais e internacionais que financiam projetos de preservação de recursos hídricos, Mata Atlântica e, por que não, planos diretores de tantas cidades especiais?

 

VI . Bibliografia

Barbosa, Tereza C. P. e Janice T. P. Sousa. Planificación Urbana, Generación de Empleo y Sustentabilidade: Estúdio de Caso del Plan Comunitário para Planície do Campeche em Florianóplis, Santa Catarina. In Conservação da Diversidade Biológica e Cultural em Zonas Costeiras. Enfoques na América Latina e Caribe. Unesco/MAB/Sebrae/UFSC, APED Florianópolis 2003.

Barbosa, T.C.P - Ecolagoa - Um Breve Documento da Bacia Hidrográfica da Lagoa da Conceição. Ed. Agnus. Florianópolis, SC MMA/UFSC/ECZ. 2003.

Bastos, Erica Ferreira et al. Unidades Geo-ambientais subsidiando o mapeamento das classes de uso e ocupação do solo da Ilha de Santa Catarina. PPG em Engenharia de Produçõa/UFSC/ENP. 2003.

Cartilha: Decida seu Futuro - Nosso Plano vai ser Votado. Movimento Campeche Qualidade de Vida, Florianópolis, SC, 2001.

Cartilha: Conhecendo o Estatuto da Cidade. FNRU/FASE/CEF. Rio de Janeiro, 2001.

CECCA - Centro de Estudos Cultura e Cidadania. Uma Cidade numa Ilha. Ed. Insular. Florianópolis, SC, 1997.

CECCA - Unidades de Conservação e Áreas Protegidas da Ilha de Santa Catarina. Caracterização e Legislação. Ed. Insular, Florianópolis, SC, 1997.

Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento - Nosso Futuro Comum - Ed. Fundação Getúlio Vargas, RJ, 2ª edição, 1991.

Cidades Sustentáveis - Subsídios à elaboração da Agenda 21 brasileira. Consórcio parceria 21 - MMA/IBAMA. Brasília, 2000.

Diagnóstico do Plano Comunitário da Planície do Campeche. Proposta para um desenvolvimento sustentável. Movimento Campeche Qualidade de Vida, Florianópolis, 2000.

Diagnóstico Geral das Bacias Hidrográficas do Estado de Santa Catarina. Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente de SC - SDM. 1997.

Encostas da Serra Geral - Um Projeto de Vida. Publicação da Associação dos Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral e seus parceiros - AGRECO. impressa pela Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina. 2003

ESTATUTO DA CIDADE: Guia para Implementação pelos Municípios e Cidadãos. Câmara dos Deputados/ Instituto Polis. 2001.

Elements of Sustainable Development: Sustainable Land Use - City - Friendley Transport Policy Urban Exchange. Initiative II in Encontro dos Ministérios Responsáveis pelo Planejamento Regional e espacial da União Européia. Maio, 1999.

Guerini, Eduardo - Metropolização e Impactos Sócio-ambientais em Florianópolis (1986-96). PRPG em Sociologia Política/UFSC/CFH. Florianópolis, SC, 2000.

Hanazaki, Natália - Comunidades, Conservação e Manejo: o Papel do Conhecimento Ecológico Local. Biotemas, 16(1)23-47, UFSC, Florianópolis, SC. 2003.

IBGE - Atlas Geográfico Escolar - RJ. 2002.

Loureiro, Jane Furtado et al. Instrumentos de Intervenção Urbana. O caso de Porto Alegre, Florianópolis e Bumenau. COBRAC. UFSC. 2002.

Martins, Celso - O Tabuleiro das Águas. Resgate Histórico e Cultural de Santo Amaro da Imperatriz. Ed. Instituto Recriar, Florianópolis, SC. 2ª edição 2001.

Peres, Lino Fernandes Bragança et al - Oficinas de Planejamento Urbano em Florianópolis. A Universidade e a Cidadania na Construção do Espaço Urbano. Rev. Participação. Nº 8, 2000.

Research News - The European Spatial Development Perspective. Federal Office for Building and Regional Planning - Bonn-Germany.

Shäffer, Wigold. B. e Prochnow, Miriam. A Mata Atlântica e Você. Como preservar, recuperar e se beneficiar da mais ameaçada floresta brasileira. Apremavi/Brasília/2002.

Siebert, Claudia et al. Desenvolvimento Regional em Santa Catarina - CODESC. Edifurb. Blumenau/Santa Catarina. 2001.

Simões Lopes, L. e Lino Ferreira, C- Sustentável Mata Atlântica, a exploração de seus recursos florestais. Editora Senac - SP. 2002.

Thery, Hervé. Um Atlas Franco-brasileiro das Disparidades e das Dinâmica Territoriais do Brasil. França Flash, Nº 35. Pág. 16-17. 2003.

Informações adicionais foram obtidas nos seguintes sites:

www.brasilchannel.com.br/municípios/santacatarina...

www.belasantacatarina.com.br/grandefloripa

Caderno Virtual de Turismo - Google: Florianópolis, a questão urbana.

E nos seguintes jornais catarinenses:

A Notícia, Diário Catarinense e O Estado, Gazeta mercantil, Fala Campeche e Cidadania, todos de Santa Catarina.

Agradecimentos especiais:

Júlia Bittencourt - Acadêmica do curso de Arquitetura da UFSC. Membro do Movimento Campeche Qualidade de Vida.

 

Topo

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

 

 

PLANO DIRETOR E ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV)

Vanêsca Buzelato Prestes

 

 

SUMÁRIO.

      1. ESTATUTO DA CIDADE, ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA E PLANO DIRETOR.
      2. A NECESSIDADE DE AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS.
      3. AS LICENÇAS URBANÍSTICAS E O ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV).
      4. A AVALIAÇÃO DE IMPACTOS EM PORTO ALEGRE
      5. DO ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV) NO ESTATUTO DA CIDADE.
      6. SUGESTÕES DE EMPREENDIMENTOS E ATIVIDADES SUJEITAS À ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV). Poluição Sonora. Poluição Visual.
      7. CONCLUSÕES.

 

I - ESTATUTO DA CIDADE, ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA E PLANO DIRETOR

O Estatuto da Cidade, lei federal que institui a política urbana de que tratam os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, criou um sistema de normas e institutos que têm em seu cerne a ordem urbanística, fazendo nascer um direito urbano-ambiental dotado de institutos e características peculiares, enraizado e fundamentado no texto constitucional, que possibilita a construção do conceito de cidade sustentável, com suas contradições, dicotomias, perplexidades, antagonismos e pluralidade. O Estatuto da Cidade é a expressão legal da política pública urbano-ambiental, norma originadora de um sistema que interage com os diversos agentes que constróem a cidade, e a reconhece em movimento, em um processo que precisa, de um lado, avaliar e dar conta das necessidades urbanas e de outro estabelecer os limites para a vida em sociedade, considerando que esta sociedade está cada vez mais dinâmica, exigente e com escassez de recursos naturais.

Há uma mudança de paradigma caracterizada pela análise da cidade e dos empreendimentos pontualmente considerados, a partir do direito urbano-ambiental. Este novo direito separar o direito de propriedade do direito de construir, não reconhece a propriedade se esta não cumprir com a função social, tem no Plano Diretor o instrumento principal da política urbana e o definidor da função social da propriedade na cidade, bem como reforça a gestão e os instrumentos para atuação municipal.

O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) está dentre os instrumentos de gestão que dependem da regulamentação municipal e que permitem a avaliação dos impactos causados por empreendimentos e atividades urbanas. Trata-se de um instrumento contemporâneo, que atende as exigências da vida moderna e que está integrado ao direito urbano-ambiental, que tem sua matriz no cumprimento da função social da propriedade. A partir da análise dos impactos é possível avaliar a pertinência da implantação do empreendimento ou atividade no local indicado, ou seja, avaliar se o proposto está adequado ao local, estabelecendo uma relação da cidade com o empreendimento e do empreendimento com a cidade, considerando o meio no qual está inserido. Além disso, a partir da avaliação de impactos é possível apontar formas de mitigação do impacto gerado, ou seja, minoração dos efeitos do empreendimento ou atividade no meio urbano, além de medidas compensatórias para o mesmo meio no qual a atividade ou empreendimento se instalará.

 

II - A NECESSIDADE DE AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS

A preocupação da humanidade com a degradação do meio ambiente gerou a necessidade da criação de instrumentos de tutela ambiental, visando a reparação do dano. Mais recentemente o direito incorporou instrumentos que buscam a prevenção do dano ambiental. Dentre tais instrumentos sobressaem-se o zoneamento ambiental, o planejamento ambiental e o estudo de impacto ambiental. No Brasil, as avaliações ambientais foram introduzidas por intermédio da Lei Federal Nº 6938/81, que criou o sistema nacional do meio ambiente. Apesar da lei não ter restringido o âmbito de aplicação ao meio ambiente natural a incidência maior de aplicação visou a mitigação de impactos a este meio.

A partir da Constituição de 1988 e da Resolução Conama nº 237/97, com a definição de competências expressas aos municípios em matéria ambiental estabelecida na Constituição Federal e com a explicitação efetuada pela citada Resolução, é que o meio urbano passou a ser objeto de maiores avaliações, identificando a preocupação com a incidência da legislação ambiental e dos instrumentos de planejamento previstos nesta. Deste movimento é que começaram a aparecer Estudos de Impacto Ambiental para implantação de condomínios, loteamentos grandes, shopping centers, hipermercados, todas atividades urbanas impactantes ao meio ambiente construído, e que precisam ser avaliadas. Importante salientar que o conceito de meio ambiente no espaço urbano, que é notadamente construído e modificado pelo homem, difere do conceito de meio ambiente relacionado ao ambiente natural. A Lei Federal nº 6.938/81, recepcionada pela Carta Magna, conceitua meio ambiente como o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. A Constituição Federal, em seu art. 225 estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Note-se, que a dicção legal recepcionada pela novel Constituição e o comando constitucional vigente no Brasil, adotam uma conceituação ampla de meio ambiente, que engloba a vida em todas as suas formas, pressupondo a integração do homem a este meio. E, é adoção deste conceito amplo, que permite a avaliação dos impactos no meio ambiente urbano, compreendendo-o como notadamente construído e modificado pelo homem e com todas as interações relativas ao ambiente natural, social, ao desenvolvimento econômico e sócio-cultural, na cultura local e na infra-estrutura da cidade.

A avaliação dos impactos é uma exigência contemporânea, de uma sociedade que está assistindo ao escasseamento dos recursos naturais, ao esgotamento dos grandes aglomerados urbanos e a degradação das relações de vizinhança e que não tem mais como viver em sociedade, buscando padrões de qualidade de vida, sem analisar e incidir sobre os empreendimentos, as atividade e o seu próprio universo, a partir da relação estabelecida do projeto com a possibilidade de absorção pelo meio no qual irá se inserir. A implantação de empreendimentos e atividades, além das tradicionais limitações administrativas físico-territoriais e de zoneamento, relacionadas ao regime urbanístico da gleba e da atividade prevista para a região, passa a se submeter a outro exame, relativo a possibilidade fática de absorção da atividade/empreendimento no local proposto, bem como da compatibilidade com o local no qual pretende se instalar.

Um dos grandes desafios para os gestores públicos consiste em superar a visão fragmentada das análises. O mesmo curso d água que é manancial para quem trabalha com recursos hídricos, é corpo receptor para quem trabalha com águas servidas (esgoto). A danceteria que é ponto de encontro de jovens é fonte de poluição sonora insuportável para a vizinhança das imediações. O shopping que gera emprego e movimenta a cidade, também ocasiona grande congestionamento, porque não possui vias adequadas a sua acessibilidade. O desafio consiste em todas as áreas do conhecimento que interferem no processo de aprovação urbanística e ambiental buscarem uma nova síntese que supere a visão fragmentada das análises, implicando numa decisão mais abrangente e que gere melhor qualidade de vida .

Além disso, é fundamental a participação popular no processo de tomada de decisão. Apesar de não estar expressamente prevista audiência pública para EIV no Estatuto da Cidade, os municípios podem e devem prever a hipótese na regulamentação do EIV no âmbito municipal, identificando as atividades e empreendimentos sujeitas a este, bem como prevendo audiência pública ou outras formas de publicização da análise.

O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) é mais um instrumento de gestão previsto para avaliação de impactos urbanos. Entendemos que é similar ao EIA, porém como estabelece a própria lei, não o substitui (art. 38, Estatuto da Cidade), sendo que, é nossa opinião, que nas hipóteses que cabe EIA não há que se falar em EIV. Ou é um ou é outro. Ambos são instrumentos de gestão para avaliação de impactos, sendo que o EIA é mais complexo, prevê alternativas locacionais e tem assento constitucional, devendo ser aplicado para as situações urbanas previstas na Resolução 237 e naquelas estabelecidas em cada legislação municipal. Entendemos fundamental alertar para este aspecto, porque como instrumentos de gestão que são, exigidos pelo mesmo ente federativo nas hipóteses em que os municípios são licenciadores ambientais, não há nenhum sentido em solicitar um e outro somente porque são de competência de Secretarias distintas da mesma Administração. As grandes críticas às legislações urbanística e ambiental são a ineficácia e a morosidade do processo decisório. A introdução deste instrumento de gestão deve visar a melhoria do processo de gestão e não a sua burocratização. Por isso, é fundamental, apesar dos âmbitos distintos, a compatibilização das licenças urbanística e ambiental e dos instrumentos que antecedem esta, a fim de não continuar insistindo em práticas de gestão que já demonstraram ser ineficazes e não contribuírem parta a melhoria da qualidade de vida dos centros urbanos, objetivo precípuo da norma objeto do debate.

Como instrumento de gestão que é, na mesma linha do EIA, o EIV não substitui a decisão do administrador. É um instrumento para a tomada de decisão e é mitigador desta. Em outras palavras, o administrador precisa considerar os elementos colocados no EIV, porém não precisa aderir a este, desde que justifique e motive. O mesmo ocorre com o resultado de audiência pública. A Administração Pública não está vinculada às decisões da audiência pública, até porque podem ser contraditórias. Precisa analisar e avaliar o colocado nestas audiências, motivando a sua decisão, dizendo os porquês e enfrentando as questões colocadas pela participação popular. Importante trazer à reflexão considerações sobre a natureza jurídica do EIA que no nosso entendimento aplicam-se ao EIV. O EIA é um "estudo das prováveis modificações nas diversas características sócio-econômicas e biofísicas do meio ambiente que podem resultar de um projeto proposto". Inserido como essencial instrumento da função ambiental planejadora visa fazer com que a administração pública integre a preocupação ambiental como elemento a ser analisado quando da decisão administrativa de licenciar empreendimentos. Trabalha justamente na raiz do problema, porque exige do administrador que além de preocupar-se com a questão, manifeste-se fundamentadamente sobre a mesma. Consoante lição de Antônio Herman Benjamin, o EIA é o instrumento de prevenção ambiental que incide diretamente na discricionariedade do administrador, justamente porque limita o poder discricionário, na medida em que restringe a liberdade do responsável pelas decisões, exigindo que na motivação do ato administrativo esteja presente a análise da questão ambiental. Diz o renomado autor:

 

"O EIA, atua fundamentalmente, na esfera de discricionariedade da Administração Pública. Seu papel é limitar, no plano da decisão ambiental, a liberdade de atuação do administrador. Se o EIA é limite da decisão administrativa, não se confunde, pois com a decisão administrativa em si. Sendo momento preparatório da decisão, o EIA a orienta, informa, fundamenta e restringe mas, tecnicamente falando, não a integra como um dos seus elementos internos. É parte do procedimento decisório mas não é componente interior da decisão administrativa.

 

Ainda, cabe trazer à colação o excerto que segue:

 

"É bom ressaltar que o EIA não aniquila, por inteiro, a discricionariedade administrativa em matéria ambiental. O seu conteúdo e conclusões não extinguem a apreciação de conveniência e oportunidade que a Administração Pública pode exercer, como, por exemplo, na escolha de uma entre as múltiplas alternativas, optando, inclusive, por uma que não seja ótima em termos estritamente ambientais. Tudo desde que a decisão final esteja coberta de razoabilidade, seja motivada e tenha levado em conta o próprio EIA.

Isso porque o EIA, como se sabe, visa integrar a preocupação ambiental ao complexo de fatores que influenciam a decisão administrativa (econômicos, sociais, etc.). Sopesar o meio ambiente não significa, em realidade, fazê-lo predominante. A decisão administrativa não se submete ao monopólio da preocupação ambiental. Seria sair de um extremo e ir para outro. É, pois, um esforço mais de integração do que de dominação.

 

III - AS LICENÇAS URBANÍSTICAS E O ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV)

As primeiras licenças de construção controlavam a estética do projeto, a acomodação às normas de polícia de construção individualmente tratadas. A partir do advento das licenças urbanísticas passou-se a controlar as atividades urbanísticas, visando a adequação ao planejamento urbanístico, ao plano de etapas. Além disso, passou-se controlar o como construído, ou seja, se a construção seguia o que fora aprovado.

Não é objetivo deste estudo examinar o histórico das licenças urbanísticas. Queremos, tão somente, alertar para o fato de que contemporaneamente, com a necessidade de análise dos impactos gerados pela atividade e pelos empreendimentos, há uma mudança na natureza jurídica destas licenças, até então consideradas vinculadas. Se há necessidade de avaliar os impactos a relação estabelecida extrapola a verificação do cumprimento das normas do plano urbanístico, do zoneamento e de outras tradicionais normas urbanísticas. Há uma relação da cidade com o empreendimento e deste com a cidade, verificando se é possível absorvê-lo e em que condições. Há um reconhecimento da edificação como função pública subsidiária, submetida ao interesse público.

O EIV precisa integrar o processo de aprovação urbanística e ambiental, sendo exigido como pré-requisito deste e necessariamente integrado ao Plano Diretor, justamente porque é instrumento desta inovação trazida a partir das avaliações dos impactos. O EIV apartado do Plano Diretor e do processo de aprovação urbanística e ambiental não cumprirá com a finalidade para o qual foi previsto, ou seja, ser instrumento da gestão e da sustentabilidade urbano-ambiental que, ao fim e ao cabo, é o objetivo do Estatuto da Cidade.

 

IV - A AVALIAÇÃO DE IMPACTOS EM PORTO ALEGRE

Porto Alegre tem tradição na análise dos impactos de empreendimentos no meio urbano. Desde o Plano Diretor de 1979 adotou um instrumento denominado EVU - Estudo de Viabilidade Urbanística . O Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) é um anteprojeto onde são analisadas as interferências urbanas do empreendimento em si e no entorno. Constitui-se em um estudo prévio realizado pelo empreendedor, à luz da legislação e do regramento pré-existente, para apresentação de um projeto. A viabilidade é exatamente a possibilidade de edificar ou parcelar na forma proposta pelo empreendedor. Os órgãos municipais, por intermédio de comissões inter-órgãos, reúnem-se para avaliar se a proposição apresentada é viável, se contempla todos os aspectos necessários, se atende a legislação existente, bem como se é a melhor forma de aproveitamento do imóvel. Antes de aprovar o EVU apresentam todas as condições e exigências, inclusive da realização dos estudos ambientais, nas hipóteses em que estes sejam necessários. O representante dos órgãos municipais nas comissões é o responsável por expressar no exame dos projetos a avaliação das diretrizes e das normas referentes às respectivas políticas públicas. No EVU, especialmente as mitigações de tráfego relativas ao alargamento de vias públicas ou implantação destas para viabilizar o acesso ao empreendimento, já eram apontadas como exigência para implantação dos mesmos. Na construção do Shopping Praia de Belas, há mais de vinte anos, empreendimento situado em área central da cidade e com fluxo significativo de veículos, já foi exigido a ampliação de uma avenida para acessibilidade ao empreendimento.

Com o passar do tempo, o aperfeiçoamento do processo de avaliação e o advento do licenciamento ambiental no âmbito municipal, outros elementos que interferem com o meio urbano passaram a ser objeto de análise, apontando as medidas mitigadoras e compensatórias respectiva.

O procedimento de análise segue os seguintes passos. O EVU, é o instrumento inicial, apresentado pelo empreendedor, propondo a realização de do empreendimento. A partir da proposta é que o Município vai dizer se o projeto pode ser realizado e em que condições deve ser implantado. Na análise do EVU é que o órgão técnico dirá da necessidade de realização de estudos ambientais. Nos casos obrigatórios decorrentes da

Resolução CONAMA 001 e 237 o EIA é imediatamente exigido. Para as hipóteses de avaliação da degradação ambiental, conceito aberto que depende da concreção do fato à norma, a SMAM, por intermédio do procedimento do licenciamento ambiental, indicará a necessidade ou não de estudos ambientais.

Baseado neste conceito de meio ambiente urbano e ciente da necessidade de avaliar os impactos decorrentes da implantação das atividades e empreendimentos em todos os aspectos da vida urbana, o processo de avaliação passou a contemplar questões outrora não avaliadas, especialmente o impacto sócio-econômico das atividades a serem implantadas.

Para tanto, foi publicado o Decreto Nº 11.978/98, que estabeleceu a obrigatoriedade da apresentação de estudo de impacto para empreendimentos do varejo (shoppings, hipermercados, centros comerciais) com área de venda contínua superior a 2000m². O pressuposto deste Decreto foi trabalhar o impacto urbano-ambiental destas atividades, em especial no aspecto sócio-econômico, considerando a região da cidade que o empreendimento visa se estabelecer. Para tanto, o estudo exigido compreende três enfoques: meio físico, meio biótico e meio sócio-econômico, além de um programa de monitoramento dos impactos ao longo do tempo, identificados no Termo de Referência entregue para o empreendedor, dizendo as bases que o estudo deve desenvolver.

A análise dos impactos é efetuada pelo Grupo de trabalho intersecretarias, cuja composição básica compreende a SMIC (Secretaria de Indústria e Comércio), a SMAM (Meio Ambiente), a SPM )Planejamento), SMT (Transporte), SMF (Fazenda) e Gabinete do Prefeito. Há análise e definição quanto ao licenciamento ou não do empreendimento, e, na hipótese do licenciamento, definição das medidas que deverão ser atendidas pelo empreendedor. Neste ínterim ocorre audiência pública, na qual o empreendedor apresenta o projeto e a comunidade se manifesta. As sugestões da comunidade são analisadas pelo grupo intersecretarias e sendo possível e adequado são incorporadas às exigências a serem feitas ao empreendedor. Percebe-se uma aproximação do empreendedor com a comunidade, sendo que a maior parte das demandas resultam são consensuadas. Ao final do processo, firma-se um Termo de Compromisso com a identificação de todos os compromissos do empreendedor e do Município para o processo de aprovação do empreendimento, explicitando o momento em que deverão ser cumpridos. Este termo é um ato administrativo que integra a licença a ser expedida, sendo requisito para expedição desta. É fruto da concertação administrativa e tem em seu conteúdo mecanismos jurídicos que podem buscar o cumprimento judicial das exigências para a instalação do empreendimento ao longo do tempo.

Para exemplificar, trazemos à colação o caso da instalação de um hipermercado, no qual após a apresentação dos estudos exigidos pelo Município, a análise técnica e a realização da audiência pública, resultaram a aplicação das seguintes medidas urbano-ambientais para mitigar e compensar os impactos gerados: a) abertura e pavimentação de uma avenida; b) pagamento do valor da desapropriação da área para implantação da avenida; c) reconstrução de canal sobre arroio que passava pela área do empreendimento; d) construção de creche para 60 crianças que foi entregue ao Município equipada; e) separação e entrega de resíduos sólidos gerados no empreendimento nos galpões dos projetos de geração de renda do Município; f) quarenta pequenas lojas no empreendimento a serem ofertadas preferencialmente para comerciantes da região; g) comercialização dos produtos da marca "sabor local" que integra projetos de economia local do município; h) contribuição com R$ 480.000,00 (quatrocentos e oitenta mil reais) para o Projeto de Apoio à economia Local; i) contratação de 10% dos funcionários com mais de trinta anos.

Todas as medidas decorreram de avaliação do impacto do empreendimento naquele local da cidade. Trata-se de área de comércio de rua tradicional e significativo, por isso as medidas com ênfase no impacto na economia local. O Termo de Compromisso foi firmado em outubro de 1999 e o hipermercado entrou em funcionamento no ano seguinte. Todas as medidas foram cumpridas, sendo que, as que são permanentes, o Município segue monitorando.

Este foi o primeiro empreendimento que aplicamos a metodologia descrita, enfatizando a análise do impacto sócio-econômico. De lá para cá temos uma série de outros empreendimentos analisados e para os quais aplicamos medidas mitigadoras e compensatórias e que estão em funcionamento.

Deste processo extraímos alguns aprendizados. O primeiro deles é que estes instrumentos novos somente têm sentido se integrados a um processo de planejamento e gestão. Para tanto, precisam integrar e se articular com o que já existe, em especial com o Plano Diretor da Cidade. O segundo é que as cidades precisam ter regras. Os empreendedores negociam, atendem o que é solicitado, desde que as regras e os processos de aprovação sejam claros e evitem a morosidade. Não foi o nosso caso para o empreendimento relatado. O grande desgaste foi a morosidade, porque como era o primeiro estávamos em um processo interno de aprendizagem que levou um tempo para se acomodar. Hoje já estamos em outro estágio, não tão eficaz quanto deveria, porém também não tão moroso e desencontrado como já foi. Todavia, somente temos condições de fazer esta avaliação porque tivemos a ousadia de encararmos o desafio de ampliar a análise dos impactos, superando a visão físico-territorial e incidindo em outras áreas extremamente importantes para a sustentabilidade urbano-ambiental.

Ainda não implantamos o EIV em nossa cidade. Porém quando da sua implantação certamente será integrado aos instrumentos existentes, ao Plano Diretor, seguindo o mesmo procedimento que visa a enxergar a cidade na sua universalidade, sendo exigido para aqueles casos em que a lei municipal definir, integrando-se ao processo administrativo de aprovação urbanística e ambiental. O EIV é um instrumento de gestão urbano-ambiental e somente tem sentido se articulado com o Plano Diretor e aos outros instrumentos de gestão existentes.

 

V - O ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV) NO ESTATUTO DA CIDADE

O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) está previsto no arts. 36 a 38 do Estatuto da Cidade. A teor do que dispõe o art. 36, cabe a Lei Municipal definir os empreendimentos e atividades, públicos ou privados em área urbana, que dependerão de estudo prévio de impacto de vizinhança para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento, a cargo do Poder Público Municipal. Deve ser elaborado um projeto de lei definindo as atividades e os empreendimentos sujeitos ao EIV, incluindo o pedido de ampliação e de funcionamento destes como momentos para exigência do EIV. O EIV, por sua vez, consiste em um estudo a ser elaborado pelo empreendedor, enfrentando as questões apontadas pelo Poder Público a serem analisadas.

Do comando legal em epígrafe, surgem vários elementos para análise. O primeiro é que trata-se de definir empreendimentos e atividades urbanas sujeitas ao EIV. Esta conceituação traz a obrigação da avaliação de atividades urbanas. Avaliar uma atividade não implica tão somente em saber se é do gênero alimentício, é de entretenimento ou se é comercial, residencial ou industrial. A avaliação da atividade deve estar vinculada ao impacto que gerará ao entorno e à própria cidade. Um Mac Donald s, por exemplo, é do gênero alimentício tanto quanto uma lancheria, em tese sujeitos ao mesmo alvará e por conseqüência a mesma análise. Todavia, o impacto causado por um Mac Donalds é muito maior que uma lancheria, especialmente na circulação, dado ao afluxo de carros e pedestres usual nesta atividade. A análise precisa considerar a atividade específica que será desenvolvida ou que passará a ser exercida na hipótese de ampliação . A avaliação da quantidade de vagas de estacionamento, a largura das vias de acesso, os gargalos do fluxo do trânsito que confluem para um mesmo local, o barulho são extremamente importantes merecendo análise tópica, ou seja, dependendo da atividade específica.

O segundo elemento refere-se a atividades/empreendimentos públicos ou privados. Aqui também, um enfoque até certo ponto inovador. Quantos prédios públicos, Foruns, Tribunais não são dotados de estacionamento para baratear o projeto? Todavia, é evidente que nestes locais circulam uma enorme quantidade de veículos e que precisam de estacionamento, sendo que na inexistência deste as ruas do entorno sofrem fortemente os efeitos. Esta é uma constatação. Não significa que sem o EIV os municípios não pudessem ou não podem exigir vagas de estacionamento. O fato é que a situação descrita é peculiar às grandes cidades e que deve ser repensado, sendo o EIV um instrumento para tanto. O mesmo raciocínio se aplica a hospitais, grandes casas de espetáculos, a eventos que ocorrem sazonalmente.

O terceiro elemento refere-se a dicção construção, ampliação ou funcionamento. Ou seja, mesmo a atividade/empreendimento já estando em funcionamento para sua ampliação, se estiver sujeita ao EIV, deve ser analisada. É muito comum a ampliação de centros comerciais e shoppings, de danceterias, de boates, dependendo do acolhimento do mercado. Como já estão instalados, é usual não voltar a análise por considerar que já estão instalados, motivo pelo qual esta previsão é importante para o efetivo controle do impacto das atividades urbanas. É necessário avaliar se a ampliação pretendida é possível e se o entorno a comporta.

Ainda, entendemos que comporta o EIV para hipóteses de mudança de uso prevista no Plano Diretor, especialmente do rural para o urbano. Isto porque esta mudança implica em destinação diversa da usualmente praticada, afetando diretamente os vizinhos.

Cabe ainda analisar a quem compete a elaboração do EIV. Diferente da legislação ambiental, não há previsão legal expressa. Entendemos que a legislação municipal quando regulamentar o EIV pode prever que compete ao empreendedor a elaboração do estudo, porque ele somente será um elemento para a análise municipal. Na hipótese de empreendimento público também cabe ao empreendedor, por intermédio de seus órgãos, apresentar o estudo. Em ambas as hipóteses, diferente do EIA que tem legislação própria, que alberga empreendimentos e atividades de maior complexidade e que invariavelmente necessita de áreas do conhecimento que nem sempre o município dispõe de técnicos, a equipe responsável pelo estudo não tem obrigatoriedade de ser multidisciplinar e pode ter vínculo com o empreendedor. O EIV deverá avaliar, no mínimo, os itens referidos no art. 37 do Estatuto da Cidade, podendo o órgão municipal acrescentar outras questões a serem examinadas, que sejam pertinentes ao empreendimento ou atividade.

Por último, cabe novamente ressaltar a importância de prever audiência pública nos empreendimentos sujeitos a EIV. A participação popular no processo de tomada de decisão é um dos corolários do Estado Democrático de Direito. O conhecimento da realidade, das transformações desta e o envolvimento da população com a sua cidade, constituem-se em um dos pressupostos para uma sociedade sadia, que sabe valorizar os recursos naturais, que com pequenas práticas protege-o e, sobretudo, que se envolve com a sua cidade. Assim como o vizinho, a associação comunitária tem o direito de saber que empreendimento ou atividade será construído e em que condições . Para tanto, mecanismos como a audiência pública devem estar expressamente previstos na lei municipal. Além disso, uma prática usual em outros países pode ser incorporada em nossos empreendimentos. Além do responsável técnico, poderia ser exigido a exposição do nº do alvará ou das licenças urbanística e ambiental, a fim de que, por um lado, possa ser identificado a regularidade do empreendimento e de outro, o Município disponibilize aos interessados as informações pertinentes a este.

 

VI - SUGESTÕES DE EMPREENDIMENTOS E ATIVIDADES SUJEITAS À EIV

Entendemos que as atividades urbanas que causam (a) poluição visual, (b) poluição sonora, (c) as estações de rádio base de celulares, bem como empreendimentos urbanos de (a) loteamentos com um número de hectares compatível com o impacto gerado à cidade respectiva, (b) condomínios, contendo um número de economias que geram impacto, dependendo da cidade e (c) hipermercados e shopping centers, devam estar sujeitas ao EIV, nas hipóteses da legislação municipal não exigir EIA para as mesmas. A exigência de EIA ou outro instrumento de gestão ambiental afasta o EIV, devendo contemplar todos os elementos que o EIV analisaria.

Além da análise dos itens estabelecidos nos incisos do art. 37 entendemos que a legislação municipal deva prever a possibilidade de exigir os seguintes estudos: a) impactos de volumetria de edificações, (b)levantamento de vegetação, (c)impactos sócio-econômicos, (d)impactos no patrimônio histórico-cultural, (d) impacto nos recursos hídricos. Esta possibilidade não implica em obrigatoriedade. Dependendo da característica do empreendimento será exigido o estudo necessário.

Analisaremos com maior detalhe as atividades potencialmente causadoras de poluição sonora e visual, face a abstração que a identificação teórica pode ocasionar, o que não ocorre com as demais.

 

Poluição sonora

A Poluição sonora é certamente um dos grandes problemas do mundo contemporâneo, sendo que nas cidades é o local onde mais se intensifica, porque ocorre a incidência de várias fontes poluidoras. Ruído de indústrias, veículos automotores, som de bares, danceterias, oficinas, construtoras, alto falantes, alguns cultos religiosos, estão presentes no cotidiano das cidades, sendo necessário um regramento para o exercício das atividades, para que a vida em sociedade seja tolerável.

Abordando o assunto e a competência do Ministério Público para o ajuizamento de ações versando sobre este tema, Ana Maria Marchesan alerta para o problema de saúde pública decorrente da poluição sonora a saber:

"Porém, o ruído repercute na saúde humana afetando a audição, provocando dor e podendo mesmo danificar de forma irreversível o mecanismo fisiológico da audição. O ruído provoca perturbações fisiológicas diversas, tais como flutuações das pulsações cardíacas, da tensão arterial e da vasodilatação dos vasos periféricos e ainda contração dos músculos das vísceras e modificações do funcionamento das glândulas endócrinas.

O sono fica profundamente afetado pelo ruído, tendo como reflexo uma menor produtividade do indivíduo em suas atividades laborais, dificuldades em desempenhar tarefas que exijam concentração e interferências nocivas na comunicação oral".

A Resolução Conama 001/90, de 02.04.90, dispõe sobre padrões de emissão de ruídos. Por sua vez, NBR 10.152 fornece os níveis de ruído para conforto acústico, sendo estas as legislações federais existentes sobre o assunto. Não obstante, em face da competência constitucionalmente atribuída a estes, os municípios podem e devem legislar sobre o assunto, inclusive adotando padrões mais rigorosos para o controle da poluição sonora, se for o caso. Os municípios têm um vasto caminho a trilhar no tema, tanto no exercício da competência legislativa (expedição de leis), quanto administrativa, fiscalizando os padrões acústicos nas cidades.

Nara Ione Medina Schimitt salienta que as edificações possuem forte papel na prevenção contra ruídos, pois condicionam a propagação do som devido às suas características geométricas, materiais e funcionais. Aduz que os materiais utilizados na construção interferem e controlam a propagação do som, determinando a qualidade acústica dos ambientes. Esta observação dá conta de matéria de competência exclusiva municipal, qual seja, a polícia das edificações. Além disso, é atribuição dos municípios o estabelecimento de horário para o exercício das atividades (ex. funcionamento bares e danceterias, carga e descarga, horário para realização de obras de construção civil, realização de eventos públicos, etc.).

Outro problema urbano que vem se intensificando é o ruído decorrente dos cultos religiosos que utilizam alto falantes e outros mecanismos causadores de barulho. O controle do ruído e a fiscalização da atividade em face da poluição sonora ocasionada, em nada interfere com a liberdade de culto religioso consagrada na Constituição Federal. A delimitação de horários e a limitação dos ruídos é competência municipal e diz respeito a necessidade de regrar a vida em sociedade, portanto, não conflitando com o direito à realização de qualquer culto religioso nos termos da Constituição Federal.

O ruído urbano afeta muito a qualidade de vida nos grandes centros. Enfrentar este tema é atribuição dos municípios. O EIV pode ser um importante instrumento para avaliação dos impactos e apontamento das medidas mitigadoras. Além disso, pode ser útil na necessária concertação entre as partes envolvidas - comunidade reclamante e atividade propagadora do som - inclusive apontando horários proibidos e permitidos, visando equalizar as necessidades que não implica tão somente em evitar o ruído, mas também em possibilitar que as atividades se desenvolvam. Os instrumentos de gestão urbano-ambiental devem ser utilizados, tanto para avaliação dos impactos decorrente dos ruídos excessivos, quanto para mitigar e compensar a sua existência. Da mesma forma o zoneamento e as limitações de horário podem ser utilizadas para coibir a existência de atividades potencialmente causadoras de poluição sonora.

 

Poluição Visual

O mercado existente nas grandes cidades, aliado a livre concorrência e a sociedade consumista em que vivemos, faz com que enfrentemos uma avalanche de publicidade nos espaços urbanos. Todos querem divulgar e propagandear suas marcas, logotipos, produtos e mensagens, utilizando formas, luminosos, cartazes, "outdoors", etc.. Os espaços urbanos sofrem os efeitos desta saturação, ocasionando o que é denominado poluição visual.

A par disso, significativa parcela da publicidade nas cidades se utilizam dos espaços públicos. São exemplos os postes toponímicos (colocados em esquinas de logradouros contendo anúncios), as grades de proteção nas esquinas que expõem anúncios, os painéis colocados em parques e áreas verdes, os anúncios afixados em paradas de ônibus, entre outros. Disso resulta a imperiosa necessidade de regular a utilização destes espaços, de modo que minimize os efeitos da poluição visual.

Os luminosos irregularmente distribuídos, os anúncios em telão e rotativos nas vias públicas, o excessivo número de "outdoors" são matérias eminentemente municipais que precisam ser regradas, coibidas e enfrentadas no âmbito municipal. O direito à paisagem urbana está inserido no ambiente ecologicamente equilibrado no espaço urbano. É fundamental que os municípios atuem nestas questões antes que o grau de poluição visual seja tão intenso que somente a remediação seja possível. Estamos em um estágio no qual a prevenção pode ser efetuada. Contudo, se não forem tomadas medidas imediatas de regulação e contenção em breve a situação estará fora de controle. O EIV pode ser um importante instrumento de gestão para avaliação e análise da questão.

Além destas, ressalta-se que as operações urbanas consorciadas, por força do que dispõe o art. 33, inc. V do Estatuto da Cidade, necessitam de estudo prévio de impacto de vizinhança.

 

CONCLUSÕES

  1. No mundo contemporâneo a avaliação do impacto das atividades e dos empreendimentos é indispensável para a melhoria da qualidade de vida. No meio ambiente urbano, além dos aspectos do ambiente natural, devem ser avaliados os elementos peculiares à cidade construída e modificada pelo homem, relativos ao impacto na infra-estrutura urbana, nos aspectos sócio- econômicos, na economia local, no ambiente cultural, etc.;
  2. o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) é um importante instrumento de gestão urbano-ambiental, que serve para avaliação dos impactos das atividades; lei municipal deve identificar as atividades e empreendimentos que devem elaborar o EIV como pré-requisito para concessão da licença ou alvará de edificação, funcionamento ou ampliação da atividade; as atividades e empreendimentos que já estão sujeitos ao estudo de impacto ambiental (EIA) não precisam ser identificados para o EIV, porque ambos são instrumentos de gestão, sendo que os estudos do EIV podem ser contemplados no EIA;
  3. O EIV é um instrumento de gestão urbano-ambiental e somente tem sentido se articulado com o Plano Diretor e com os demais instrumentos existentes;
  4. o EIV é um estudo que deve ser analisado pelos técnicos municipais, para auxiliar no processo de tomada de decisão; é mitigador da discricionariedade administrativa, porém não substitui a decisão do administrador;
  5. as leis municipais que regulamentarão o EIV podem e devem prever a realização de audiências públicas para os empreendimentos e atividades sujeitas ao estudo; as audiências públicas são consultivas não ficando o administrador adstrito aos resultados destas; todavia, os elementos apontados na audiência pela população devem necessariamente ser avaliados no processo de tomada de decisão;
  6. exemplificativamente, sugere-se que as atividades urbanas causadoras de (a) poluição visual, (b) poluição sonora, e (c) as estações de rádio base de celulares, bem como empreendimentos urbanos de (a) loteamentos com um número de hectares compatível com o impacto gerado à cidade respectiva, (b) condomínios, contendo um número de economias que geram impacto, dependendo da cidade e (c) hipermercados e shopping centers, além das mudanças de zoneamento, sejam identificadas na lei municipal como sujeitas ao EIV, na hipótese da legislação municipal não exigir EIA para as mesmas; as operações urbanas consorciadas devem ter EIV, por força do que dispõe o art. 33, V do Estatuto da Cidade.

 

Topo

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.